
“A quem pertences? é uma pergunta incómoda num tempo como o nosso onde se assiste a uma erosão da pertença, dos laços, dos vínculos. Foto © António José Paulino
A liturgia daquele 2º domingo de setembro de 2020 dava-nos a ouvir breves e incisivas frases da Carta aos Romanos: “Nenhum de nós vive para si mesmo e nenhum de nós morre para si mesmo. Se vivemos, vivemos para o Senhor, e se morremos, morremos para o Senhor. Portanto, quer vivamos quer morramos, pertencemos ao Senhor.” (Rm 14, 7-9). A minha memória foi tomada pela letra de uma canção que povoou o meu imaginário juvenil – um sentido grito de liberdade!
Mais do que a um país
Que a uma família ou geração
Mais do que a um passado
Que a uma história ou tradição
Tu pertences a ti
Não és de ninguém
Mais do que a um patrão
Que a uma rotina ou profissão
Mais do que a um partido
Que a uma equipa ou religião
Tu pertences a ti
Não és de ninguém
Vive selvagem
E para ti serás alguém
Nesta viagem
Quando alguém nasce
Nasce selvagem
Não é de ninguém
Quando alguém nasce
Nasce selvagem
Não é de ninguém
De ninguém…
(Grupo Resistência, 1991)
E veio igualmente à memória aquela pergunta que tantas vezes ouvi na infância, feita por um qualquer desconhecido: e tu, a quem pertences? É evidente que a pergunta inquiria sobre a minha família, principalmente o nome dos meus pais.
A quem pertences? é certamente uma pergunta incómoda num tempo como o nosso onde se assiste a uma erosão da pertença, dos laços, dos vínculos: não és de ninguém! Ainda que, paradoxalmente, cresçam os grupos de identidades fortes que suscitam uma pertença inquestionável, assinalando um inimigo externo a combater – que sempre constitui o cimento principal de uma falaciosa unidade interna.
A esta luz pode ler-se a experiência deste tempo de pandemia: pertencemo-nos mutuamente, somos responsáveis uns pelos outros! É inegável que há medo diante de uma situação totalmente nova para esta geração; é inegável que há leis dos Estados a impor confinamentos e restrições das liberdades individuais; é inegável que a morte se tornou ainda mais presente e real no quotidiano; é inegável que há desigualdades profundas que a pandemia vem expor e agravar.

Não creio que seja menos verdade que experimentamos, mais do que nunca, que o bem de todos depende de gestos e atitudes de cada um e, mesmo assim, dependemos todos da evolução de um vírus que estamos longe de controlar. Em contraciclo com um movimento de “alargamento das liberdades individuais”, bem visível nos âmbitos educativos e das questões éticas ditas fraturantes, a pandemia vem impor o horizonte do outro, da comunidade e da própria natureza, como parte integrante da nossa identidade.
Na verdade, a identidade é o fruto de um complexo processo de construção, onde intervêm fatores biológicos, culturais, religiosos. Aí se conjuga a liberdade pessoal e o contexto em que existimos, em que somos dados ao mundo. Muito mais do que um catálogo de valores e opções a escolher, a identidade começa sempre por assumir um conjunto de relações e vínculos que nos constituem como pessoas. A identidade enriquece-se e afirma-se nas múltiplas escolhas livres que assim vão tecendo a originalidade de cada pessoa, que fazem dela uma história única e irrepetível. Portanto, diferente!
Em qualquer contexto educativo, proporcionar a crianças e jovens oportunidades de assunção da própria identidade é dar importante contributo para que sejam capazes de diálogo, de encontros significativos, que deem passos novos para uma sociedade plural, sem medo do diferente, consciente da sua identidade. Uma fraternidade!
Como recorda o Papa Francisco, “se não for claro comigo, se não conheço a minha identidade religiosa, cultural, filosófica, não posso dirigir-me ao outro. Não há diálogo sem pertença”.
Estou certo que a pandemia não é magia que muda o curso da história. Mas não tenho dúvidas que aponta caminhos. Depende de nós percorrê-los!
Luís Marinho é padre católico e assistente nacional do Corpo Nacional de Escutas