
“A sala está vedada aos espectadores…” Foto: Teatro Massimo, Palermo, Itália. © Miguel Veiga.
“Um dia racho-te”, dizia o senhor Jacinto para o neto, que ficara encarregado de dar finitude à água, conforme determinava a divisão daquele bem essencial e se distraíra, violando o pacto estabelecido. A responsabilidade da distração fora de uma sardanisca, desculpava-se o rapaz entre lágrimas. Por ela deixara passar a hora e, com a distração, a água ficara mais curta, manta de menos para tanta couve sedenta, a aguardar hora na banca do mercado municipal.
Com a honra encharcada, o senhor Jacinto tivera de fazer a caminhada até à casa do vizinho, a orelha do neto numa mão, o neto atrás, o discurso engatado na ponta da língua, a saliva imaginada a escalar: “desculpe a distração do meu neto, etc etc etc, raios partam os catraios…”.
Havia honra no tempo do senhor Jacinto. E vizinhos. E desvelos. E palavras com que se saudavam sempre que os seus passos os faziam cruzar-se. Água é que não havia. Ou havia pouca e tinha de ser bem dividida. Por isso é que as desculpas eram mais urgentes.
Com a ameaça de o rachar, o senhor Jacinto não queria apenas castigar o neto, mas multiplicar as suas competências, multiplicando também as suas incompetências. Mas disso não se lembrara ele. O lado direito do rapaz para um lado, o lado esquerdo para o outro. Aquilo que ele não era capaz de fazer multiplicado por dois, as distrações vezes dois, a desfaçatez vezes dois…
(Há muito pouco tempo, um candidato à presidência da república dividia também ele o eleitorado em duas partes, rachando-o no discurso vertical: os portugueses de bem e os outros. Ele seria apenas presidente, sendo eleito, da parte “boa” dos portugueses, deitando para trás das costas os portugueses que são má gente, gente ruim. O lado direito para um lado, o lado esquerdo borda fora…)
Um dia o neto adoeceu duma doença qualquer, daquelas que se vê traduzida na pele por borbulhas e outras erupções. No convívio com os amigos, ele passou a doença a uns e a outros não. Bem entendido que não escolheu a quem passar a doença, nem tão pouco as borbulhas imundas que passaram a constar na fisionomia de uns quantos, para gozo dos que mantinham imaculada a sua pele desinfectada. Desse pecado ele não podia ser incriminado. Mas talvez fosse consequência dos desejos de antanho do avô, rachando-o para sempre, as duas metades inconciliáveis, cada uma na direcção oposta à da outra.
O mundo rachado ao meio
No meu trabalho primordial, passa-se coisa semelhante ao que aconteceu na vida do senhor Jacinto e do neto. Por força não sei de que determinação, o meu mundo, o mundo teatral, divide-se, também ele, em duas partes. Não há Tordesilhas que nos imponha o mundo assim, mas a verdade teatral determina-o: o mundo da sala e o mundo do palco. A cortina de ferro divide esses dois mundos de forma inexorável. Por razões de segurança, mas também por todas as outras razões. E esses dois mundos apenas se comunicam, quando o Encontro, como chamavam alguns antigos ao espectáculo, se dá. Mesmo que o Encontro seja um suave arremedo, em fase de ensaios, com o encenador no lugar do espectador – que o é, o primeiro a ver – e a restante equipa nos lugares da plateia.
A relação entre a sala e o palco foi mudando conforme os anos passaram pela arte. Primeiro, o mundo da sala excedia largamente em metros quadrados o mundo do palco. À sala estava reservada a fatia maior do espaço total disponível, mas, pouco a pouco, com a introdução das tecnologias, mais artesanais umas mais tecnológicas outras, a relação inverteu-se. Não que a sala dos velhos teatros tenha sido alterada na sua composição, arquitectura ou geografia, mas porque o palco foi conquistando outras áreas (do quarteirão, muitas vezes), aumentando o seu corpo. Exemplo disso, por exemplo, é o Teatre del Liceu de Barcelona. A sala manteve-se inalterável, mesmo com o incêndio que devastou parte do seu corpo, mas com a recuperação encetada, o palco conquistou os metros de que necessitava graças à generosa contribuição da burguesia catalã que, não apenas recuperou os espaços existentes, mas adquiriu os necessários que a envolviam, fornecendo à caixa mágica espaço e condição física de poder exercer na sua plenitude a sua função.
Independentemente desta diferente relação, o que não se modificou foi o diálogo entre estes dois mundos. Continuaram permeáveis na sua porosidade mais óbvia, mas definiram-se os roteiros, as portas de entrada e saída, evitando que estes dois mundos coincidissem e se infectassem, que não apenas em resultado do processo teatral.
Agora, à luz da experiência sanitária que vivemos, não é apenas o neto do senhor Jacinto que está rachado ao meio, mas o mundo todo, mais desigual, mais profundamente dividido. As duas metades originais, Caim e Abel de antanho, são agora metades muito mais desequilibradas. A pretensa democraticidade do vírus aprofundou as desigualdades. A sala está vedada aos espectadores; o palco continua (por quanto tempo?) a ser espaço habitável por parte dos agentes teatrais, que insistem – teimosos – na preparação do dia seguinte, para quando a autorização superior chegar estarem prontos e, imediatamente, as duas partes do edifício se juntarem.
Só que nessa altura o senhor Jacinto não terá a quem pedir desculpa por estar mais sozinho; o braço do vizinho que vacinava com o pedido de desculpas, ficará agora mais desumanamente inabitável; a mão vazia sem a presença da orelha do neto que há muito saiu de cena; a luz apagada; o negócio das couves a definhar, enquanto o das vacinas segue de vento em popa.
A democracia sofreu rude golpe, a desumanidade ganhou terreno, nada será como dantes.
Talvez a arte nos possa continuar a salvar. Quem sabe?
António Durães é actor