Há tempos e momentos que são mais propícios à reflexão e à interiorização, oferecendo-nos oportunidades de pensar, ou repensar, atitudes pessoais e realidades coletivas. E são estas oportunidades de refletir que, normalmente, nos abrem perspetivas de mudança, de ver novas formas de viver, de olhar novas respostas para combater injustiças, pobrezas e violações dos Direitos Humanos. São estes períodos que nos fortalecem a capacidade de silêncio, escuta, de diálogo, de sentido crítico e de compromisso individual e coletivo. Dessas experiências, cada um de nós transporta memórias das mudanças significativas daí surgidas.

“Precisamos, como de ‘pão para a boca’, de uma mudança de paradigma.” Foto © Miguel Veiga.
Este tempo de pandemia, com um ano de presença nas nossas vidas, revelou-nos como algo tão pequeno e invisível aos nossos olhos pode sacudir a nossa confiança e afetar a confiança no futuro. Obrigou-nos a mudar hábitos e atitudes. Fez parar a economia em todo o mundo. Afetou profundamente a normalidade das nossas vidas de trabalho e dos nossos ambientes familiares. Ficamos confinados; obedecemos a regras de distanciamento entre as pessoas, incluindo as que mais amamos; usamos máscaras que escondem os sorrisos das saudações e da alegria de vivermos em família e em comunidade.
Para muitos, o teletrabalho foi a solução para continuar a ter um salário, mas há que perceber que a quebra nas relações humanas e nos laços sociais que se criam nos locais de trabalho são tão importantes como o salário que garante o pão de cada dia. Aumenta o número de pessoas e de famílias a perderem rendimentos, que se juntam a tantos outros que já eram pobres pela vulnerabilidade estrutural das suas vidas.
Estas mudanças, ao apresentarem novas realidades, impelem em muitos de nós a necessidade de parar para escutar, para nos ouvir. Martela na nossa cabeça a consciência de que somos uma pertença coletiva e que “nesta tempestade estamos todos no mesmo barco”. Mas inquieta-nos a enormidade deste barco e o fosso de desigualdades que nele predominam. Desassossega-nos que, manipulados ou manietados, os meios para sairmos desta pandemia não estão ao serviço de todos em igualdade de acesso. Este “deserto” por que estamos a passar tem de contribuir para implementar mais dignidade e mais humanidade.
Não conhecemos ainda os custos reais que este tempo de pandemia terá nas nossas relações afetivas e de sociabilidade. Mas os custos sociais e económicos, na vida dos trabalhadores e das suas famílias, já começam a ser bem visíveis. É tempo de pensar como queremos sair desta pandemia: mais próximos uns dos outros, mais solidários e fraternos, mais atentos e prestativos nos cuidados e na entreajuda? Mais comprometidos com as estruturas associativas, políticas e sindicais que ajudem a gerar mais diálogo social, mais comprometidos com a inclusão e a equidade sociais?
O mundo do trabalho exige uma nova organização assente na dignidade e no respeito dos direitos laborais: que redistribua justa e equitativamente a riqueza proveniente do trabalho; que comporte horários compatíveis com a vida pessoal e familiar; que aproxime as necessidades de produção com as reais necessidades do consumo das pessoas e das comunidades.
Precisamos de um sistema tributário mais justo e equitativo, aculturado como um dever cívico das pessoas, como responsabilidade social e ética das empresas e de todos os sectores económicos e financeiros do Estado. O combate à fuga aos impostos e aos paraísos fiscais deve ser um desafio e um compromisso cívico em nome da ética, da responsabilidade civilizacional e do bem comum universal.
Os tempos controversos e de tempestade são favoráveis às mudanças. E nós precisamos, como de “pão para a boca”, de uma mudança de paradigma. Fernando Pessoa, no seu poema Mar Português, transmite-nos uma mensagem de coragem e de ousadia; “quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor, Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu”.
Precisamos desta coragem e desta ousadia de pensar, de criar e de acreditar num novo modelo de desenvolvimento e nele vermos espelhados a economia que aproxima, inclui, dignifica toda a Humanidade, em que todos nós nos temos de envolver e de comprometer, pessoal e coletivamente.
Fátima Almeida integra a LOC/MTC e é copresidente do MMTC – Movimento Mundial de Trabalhadores Cristãos