Toi e Dido, Foto Alice Caldeira Cabral

Toi (à esquerda) e Dido, filho de Alice C. Cabral, num campo de férias de Verão. Foto © Alice Caldeira Cabral

Agradeço este desafio, pois a sensação que tenho é de que eu própria não me consigo ouvir…

Precisamos dos outros, até para nos ouvirmos a nós mesmos. Este confinamento que limita os nossos contactos e gestos tem tido um grande impacto em mim, em especial pela falta de momentos de privacidade.

Apesar do confinamento, temos a casa cheia, o que é, em princípio, uma coisa boa. As duas filhas estão connosco, o que tem sido muito bom. Mas comporta alguns desafios difíceis.

Acolhemos em casa uma pessoa com deficiência, o Toi, que estava habituado a ter uma atividade ocupacional e uma rede de relações diversificadas. Ele tem saudades da sua atividade e dos seus amigos. Tem feito um esforço por se adaptar, mas tem dificuldade em compreender a situação. Exige um esforço para compreender as suas necessidades e criar momentos interessantes para ele que não sejam ver filmes violentos na TV. Partilha o meu espaço de trabalho, o que tem sido muito difícil de gerir.

Nunca tive um espaço muito privado, mas o ir à igreja criava um tempo de quebra de rotina e de encontro comigo, onde podia procurar reencontrar o sentido das coisas. A participação na eucaristia por vídeo neste espaço, sem privacidade, não é a mesma coisa. É difícil encontrar momentos de encontro comigo e com Deus, porque se instalam rotinas ou solicitações anestesiantes, que ainda não encontrei modo de gerir. Estas são as minhas inquietações mais do foro pessoal.

O desgosto de não podermos festejar os 50 anos de casados conforme estava planeado, com o encontro das duas famílias, foi mitigado por um momento de retiro a dois muito pacificador e por um piquenique na Serra d’Ossa. Outro projeto deste ano era festejar os 50 anos do Movimento Fé e Luz numa peregrinação internacional a Lourdes em 2021, que foi cancelado também. São as duas maiores dores de projetos cancelados.

Do foro mais social, é claro que a situação da pessoa que acolhi me preocupa muito, dado que não tem o acompanhamento de que carece. Tem apenas o acompanhamento de uma rede informal de amigos sem uma infraestrutura social e habitacional que lhe assegure as necessidades básicas, nas quais ele carece de apoio. O direito à habitação que respeite a sua dignidade não existe.

Alice Caldeira Cabral e Adel Sidarus

Celebração dos 50 anos de matrimónio de Alice Caldeira Cabral e Adel Sidarus, sem as famílias: um piquenique para remediar um dos projectos falhados em 2020. Foto: Direitos reservados.

 

As mesmas questões que todos temos

Segundo a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, as pessoas com deficiência têm o direito de escolher com quem querem viver. A lei portuguesa tem que garantir esse direito, mas em Portugal não há, na prática, o direito à habitação, nem um acompanhamento das pessoas com deficiência que carecem de menos acompanhamento. Temos apenas uma política assistencialista de internamento em estruturas de apoio residencial – com apoio total em “lares residenciais”, ou parcial em “residências autónomas” (nas quais, apesar de ser “apoio parcial”, se exige apoio de pessoal). Recentemente temos os assistentes pessoais dos Centros de Apoio à Vida Independente, que pressupõem que há habitação digna e não respondem cabalmente a este tipo de população.

Quem tem condições mínimas para viver com autonomia e deseja viver de forma independente, carecendo de um acompanhamento pessoal, apenas na medida daquilo que as suas capacidades não atingem, à luz da Convenção ratificada por Portugal em 2009, devia poder fazê-lo. Quem, neste caso, não é admitido numa estrutura que cerceia a liberdade e a autonomia, vive entregue a si próprio e à mercê de apoios pontuais limitados. Urge fazer uma reflexão aberta sobre a desinstitucionalização.

Esta exige que se conheçam as pessoas e que elas tenham um acompanhamento personalizado em termos de um orçamento pessoal e de um plano pessoal de acompanhamento da vida quotidiana. O planeamento centrado na pessoa estudado e recomendado como medida inclusiva, permitindo o desenho de um projeto de vida à medida das capacidades das pessoas com deficiência, tem alguns representantes no nosso país que o desenvolvem com ânimo e competência, mas ainda não enformou as medidas de política nesta área. A invisibilidade destas pessoas na nossa sociedade e na Igreja tem-se agravado nestes tempos de pandemia.

Foi uma das pessoas que ajuda o Toi que nos alertou para a realidade de que, com a pandemia, ele não teria garantida a alimentação nem a atenção e os cuidados de que carece. Além disso, ao andar sem destino, podia correr mais riscos de contaminação pelo vírus da covid-19. Há 40 anos que ele vem ao domingo para minha casa e por isso nós correríamos o risco de sermos contaminados.

Para ele as perguntas são: quando é que posso ver a minha namorada? Quando é que o “vídeo” (vírus) acaba? Quando é que vamos passear? E à noite fica inquieto e diz: “Para o mês que vem (tem dificuldade em saber o tempo, mas agora diz assim) nunca mais venho cá, nunca mais vou ao Fé e Luz e nunca mais vou ao passeio”, referindo-se aos campos de férias do Fé e Luz…

No fundo são as mesmas questões que todos temos… e as zangas que sentimos e a dificuldade em enunciá-las e dar-lhes nome.

A esperança de sairmos disto é grande, mas vão ficar sequelas – o tempo já é longo demais… O que vamos fazer com elas?

 

Évora, 11 de Março de 2021

 

Alice Caldeira Cabral é assistente social aposentada. Integra o Movimento Fé e Luz e o Serviço Pastoral a Pessoas com Deficiência.

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