
“Sei que sou uma privilegiada por ter a três minutos da porta um parque urbano…” Foto © Helena Topa Valentim
Lembro-me de, há um ano, nas vésperas de a nossa vida ficar virada do avesso com a pandemia, ter lido, entre a indignação (que sempre rende um desabafo nas redes sociais) e aquele esgar de quem ouve a piada do dia (ou vá lá, do antropoceno), que havia cientistas a discutir se a nossa seria a quinta ou sexta extinção que o planeta regista. E lia também, aí uns quinze dias antes, que, na Gronelândia, se montava uma campanha feroz para atrair turistas a ver os glaciares. Seria algo como Venha ver os glaciares antes que glup glup glup glup – imagino eu, uma vez que se queria eficaz e, para tal, nada como ser gráfico, onomatopaico mesmo. E tudo para que não restem dúvidas – de nenhum tipo, nem da urgência; aliás, muito menos da urgência. Precisamos de clarividência. E andámos tanto tempo para aqui chegar, entre veredas de obscurantismo e ignorância, afeitos à tirania do espaço e do tempo, coordenadas que não podíamos superar. Viajar, podemos agora viajar de toda as maneiras! Temos o mundo ao alcance de um braço estendido, para trás e para diante, e em todas a direções, numa rede complexa. Então, mas será a quinta ou sexta extinção? A minha curiosidade intelectual deixa-me numa suspensão difícil. Todavia, acredito que o saberei em tempo útil. Restam-me mais dúvidas quanto a se irei a tempo de ainda ver os glaciares… Maldita pandemia! Mas quem poderá agora ir ver os glaciares?

“Corre uma ribeira que ora me vai ensinando a urgência ora me dita a limpidez e o reflexo da luz…” Foto © Helena Topa Valentim.
Gostaria muito de poder dizer que isto é uma caricatura. É pelo menos gráfico, sim. Nada como ser gráfico, para que nos restem muitas dúvidas sobre a justeza da forma como estamos a viver. Há dois mil anos, também o Nazareno precisou de procurar as palavras desenhando com o dedo no chão. O que desenhava ele diante do absurdo?
Estamos num tempo assim, de ganhar balanço enquanto discernimos como agir, o que fazer a seguir. Entretanto, Entro. Conheço a minha casa. É mansa – um verso de Daniel Faria que venho repetindo como mantra. Sei que a condição de sobrevivência em que nos encontramos não pode, por isso, deixar de ser fecunda. As perdas de todo o tipo – as perdas de vidas logo à cabeça, mas também as perdas do acontecer que preenchia os nossos dias de pessoas nos espaços em que rasgávamos o ar comum – nada disso nos pode separar do Amor de Deus. Nem o presente, nem o futuro, nem as potestades, nem as alturas, nem os abismos, escrevia Paulo aos Romanos.
Pensar com o chão – ocorre-me como expressão daquilo em que se tornou este tempo para mim. Sei que sou uma privilegiada por ter a três minutos da porta um parque urbano onde, por entre árvores que albergam muitos chilreios, corre uma ribeira que ora me vai ensinando a urgência ora me dita a limpidez e o reflexo da luz. Entre o mundo liso e acético da tecnologia que se impôs como nunca e os baldios que calcorreio de manhã cedo, o que destaco é a forma como se interpenetram, por um lado, as vozes e os rostos de tantos com que interajo nos ecrãs e, por outro, o som dos meus passos.
Tudo parece exacerbar-se. Há um carinho acrescido pelos familiares, pelos amigos, pelos alunos, pelos colegas. Todos me inspiram agora mais cuidado. Na distância em que nos sabemos, acompanhamo-nos como podemos e quantas vezes apenas adivinhamos uma travessia difícil. E há o ritmo da marcha. Caramba, o que de mais ancestral conhecemos e que só agora descubro verdadeiramente! Os passos feitos ao terreno, aquele desequilíbrio necessário para que se avance. Afinal, precisamos do desequilíbrio do corpo num diálogo permanente com o chão. É para isso que serve o corpo, para, sabendo-se em missão de viagem, desenhar no chão. A melhor viagem são os próprios pés – eis um verso de Vasco Gato que aprendo nestes dias de pandemia.
Pois. Vamos ter que redescobrir os pés no chão comum para sabermos o que é respirar juntos e tudo isto ser uma grande viagem com futuro para os que vierem depois de nós.
Entretanto, cá por casa, os abraços são mais demorados.
Helena Valentim é professora universitária