I. O que a pandemia alterou

“A minha vivência não é, com certeza, diferente da coletiva e foi, e infelizmente continua a ser, marcada por um distanciamento doloroso.” Foto: Documentário O Dia Inicial. © Cláudia Alves.
Cláudia
Há cerca de um ano pedi no trabalho se poderia realizar as tarefas que faço como freelancer, mas a partir de casa. Do outro lado ouvi um “não”. As medidas do Governo ainda não tinham sido anunciadas e eu naquele momento posicionava-me contra a corrente.
Deixei de receber o meu ‘ganha-pão’, pois a minha prestação de serviços acabava de ser suspensa. Já tinha noção que trabalhar a recibos verdes era uma situação instável a nível laboral, mas a pandemia veio mostrar-nos o quanto os trabalhadores da cultura estavam desprotegidos (assim como de tantas outras áreas). Só depois, mais tarde, lenta e esporadicamente, retomei algum deste trabalho, em função da necessidade da entidade empregadora, usando aqui o vocabulário da Segurança Social.
Joana
A pandemia alterou vários domínios das nossas vidas. No âmbito familiar e social a minha vivência não é, com certeza, diferente da coletiva e foi, e infelizmente continua a ser, marcada por um distanciamento doloroso.
No âmbito profissional foi interessante perceber que apesar de muito ter mudado, alguns aspetos permaneceram intocáveis. Nada mudou relativamente à exigência dos horários, ou da presença física de uma profissão como a médica. O teletrabalho raramente funciona na medicina em geral e na oncologia (a minha área) em particular. No entanto, a natureza e características desta doença (covid-19) e particularmente da sua propagação vieram impor várias alterações e exigências ao modus operandi das instituições de saúde, particularmente restritivas nos primeiros meses pandémicos. Essas restrições tiveram impacto direto no acesso a consultas médicas, a exames complementares de diagnóstico, a programas de rastreio e na forma de prestação de cuidados de saúde, alterando a relação médico-doente-família. No âmbito da oncologia o funcionamento desta tríade é absolutamente fundamental em várias etapas do percurso do paciente.
II. A pandemia dava um filme?
Cláudia

“A princípio éramos três: eu e dois gatos…” Foto: Documentário O Dia Inicial. © Cláudia Alves.
Ainda nem uma vítima por covid-19 havia em Portugal e parecia que o lema vigente era: “Faz-te à vida! Perante uma aflição, cada um se vale a si próprio.” Eu cá por dentro pensava: como converter a energia de cada um num bem comum? Mas sentia-me paralisada em frente ao sofá a ver os números a aumentar. Com outros trabalhos soltos a serem cancelados, decidi dedicar-me aquilo que mais gosto: ao documentário. É que o documentário exige tempo, tempo para observar, e isso era coisa que eu ultimamente não tinha. Agora tinha tempo, mas não podia sair de casa.
Como já dizia a campanha “Vá para fora cá dentro”: Observar dentro de casa, claro está! A princípio éramos três: eu e dois gatos. Poucos dias depois juntou-se a Joana. Entrou-me pela casa um mundo cheio de vida, o telefone não parava de tocar: “posso sair de casa?”, “já temos kit de proteção?”, “criamos um teste in house?”, “devo prosseguir tratamentos?”.
Não é que as rotinas dos felinos não merecessem por si só um documentário, mas com as teleconsultas a começar no escritório improvisado na sala e a expandirem-se por toda a casa, o cenário era muito mais interessante! Eles exigiram ser personagens do filme e interpretam o seu próprio papel, como não atores: Aphelio e Brave. A Joana queixava-se de não poder ver os rostos dos seus pacientes, da falta do toque, e das pessoas adiarem as primeiras consultas de oncologia com receio de entrar no hospital. Que impacto teria / terá um cancro não diagnosticado a tempo? Quando as chamadas ou videoconferências eram muito longas, os gatos entravam em ação, reclamando atenção e comida. Claquete final.
Joana
A pandemia e as restrições impostas às instituições de saúde, com o objetivo de evitar a propagação da doença, prejudicaram em especial a comunicação e a vivência do luto.
Os cuidados de saúde têm-se transformado bastante nos últimos anos em várias vertentes. Por um lado, reconhecemos a necessidade de uma participação mais ativa do sujeito na tomada de decisão. Neste âmbito temos assistido à prática cada vez mais generalizada de abordagens em que médicos e doentes (apoiados na maioria das vezes pela família/amigos) partilham a melhor evidência disponível, quando confrontados com a tarefa de tomar decisões, e em que os doentes são apoiados na sua autonomia para decidir por preferências informadas. As limitações de acesso às instituições de saúde alteraram a forma de partilha desta informação excluindo por vezes intervenientes essenciais. As consultas passaram a ser realizadas com telemóveis em alta voz ou com uma chamada vídeo de WhatsApp. A era digital promete anular distâncias mas não consegue, por enquanto, concretizá-lo em pleno.
Por outro lado, hoje em dia é mais comum perder um familiar no seguimento de uma doença terminal persistente do que por morte súbita. A família e os amigos próximos, junto com a pessoa com a doença limitante, têm agora muito mais tempo para enfrentar a perspetiva da morte e de se despedir. Isto, por sua vez, mudou o processo de luto, sendo este cada vez mais suportado pelas famílias, em vez de apenas pelos indivíduos. Com a pandemia, o processo de luto, que se inicia muito antes da morte, alterou-se profundamente de uma forma que seria impensável antes de 2020, levando a uma desumanização dos cuidados de saúde.
III. Um ano depois
Cláudia
Um ano depois do início disto tudo posso dizer que consegui pôr em marcha um projeto meu de documentário, com a pandemia como pano de fundo (e bastantes vezes como protagonista). Um amigo emprestou-me a sua câmara e além de gravar, escrevi, concorri a convocatórias. Inverti a ordem das etapas habituais na forma de trabalhar. Felizmente consegui meses mais tarde o primeiro apoio financeiro do Instituto de Cinema e do Audiovisual, não queria acreditar!…
Chamei para perto de mim amigos com quem não trabalhava há muito tempo. Comecei a montar o filme à distância, sem nunca pensar que isso antes seria possível. Aquilo que aprendi durante este período de grande inquietação, coloco no filme em forma de imagens e sons. Considero-me uma sortuda, pois pude parar tudo o que estava a fazer e reinventar-me. Mas com a consciência de que isto só foi possível porque sou uma privilegiada. E com a plena noção de que somos apenas uma partícula deste universo: só faz falta mudarmos de escala, como na curta-metragem Powers of Ten (1977) de Charles and Ray Eames.
Joana

“Guardarei com certeza a memória de consultas com notícias dificílimas transmitidas a pessoas sozinhas…” Foto: Documentário O Dia Inicial. © Cláudia Alves.
Desta pandemia e do que mudou drasticamente guardarei com certeza a memória de consultas com notícias dificílimas transmitidas a pessoas sozinhas cujas famílias se encontravam em muitos casos a aguardar no exterior. Guardarei a lembrança das unidades de cuidados paliativos em que a permanência dos familiares não era permitida… em que voltámos a morrer sozinhos. Algo completamente inadmissível antes de Março de 2020 e que contraria tudo o que os cuidados de fim de vida promovem.
Guardarei também a memória dos internamentos apressados, otimizámos sob pressão cuidados de suporte para evitar internamentos no dia 24 de Dezembro que, com certeza, se traduziriam em alguns casos num último Natal passado solitariamente, sem a companhia dos mais próximos. Guardarei com certeza todos as caras pela metade das pessoas que conheci pela primeira vez durante este ano de pandemia e que espero conhecer em pleno em breve. Guardarei a lembrança do que foi perder o toque e da sua importância na comunicação, na transmissão de empatia ou de esperança.
Aprendemos muito no último ano no que diz respeito aos cuidados de saúde e à forma como os prestamos. O meu desejo é que a experiência que adquirimos, nos permita preparar melhor a resposta a próximas pandemias e àquilo que resta desta, sem alterar tanto a comunicação e a relação com o outro.
Cláudia Alves é realizadora; Joana Ribeiro é médica.