
“Fazer ponto pé de flor relaxa-me, insere as minhas mãos num movimento rítmico, libertando o meu pensamento para outras coisas.” Foto © Teresa Vasconcelos
Bordar a ponto pé de flor é uma atividade muito repousante, pelo menos para mim. Sempre um ponto maior à frente e um ponto menor atrás, traçando linhas e curvas que trazem ritmo e consistência ao bordado. Tenho feito muito ponto pé de flor ao longo de um confinamento que dura há quase um ano. Fazer ponto pé de flor relaxa-me, insere as minhas mãos num movimento rítmico, libertando o meu pensamento para outras coisas, incluindo para uma oração mais concentrada. O ponto pé de flor é como a respiração que aprendi no yoga e que se destina a purificar o corpo e a libertar a mente. Uma expiração mais longa, uma inspiração mais curta. Sinto também que estou a criar beleza e a conversar com Deus através dessa beleza. Vou-me “bordando” em ação de graças apesar da destruição causada pela covid-19.
Ao fazer ponto pé de flor também me vou unindo às dores da humanidade em ferida, aos velhinhos que nos morrem nas mãos, a tantos que infringem as regras do confinamento esquecendo a nossa profunda interdependência e arriscando pôr em risco a saúde dos outros. Ao bordar envio energias de coragem para os que estão “na linha da frente”, desejando que persistam na sua postura ética e generosidade sem limites. Que grande exemplo nos estão a dar! Penso também nos familiares e amigos/as doentes na certeza de que Deus não quer o sofrimento, mas nos ajuda, sim, a ter força e fé mesmo quando sofremos.
Queria abordar então os dois movimentos no meu confinamento que se prendem com o bordado, mas também com a minha respiração. Uma inspiração menos longa, deixando que o ar renovado encha os meus pulmões, ao jeito do ponto mais amplo do bordado. Foi assim, logo a seguir à decisão governamental do primeiro confinamento: a experiência de um vazio regenerador, de solidão fecunda, quebrada apenas por uma breve saída para apanhar ar fresco no jardim público ao lado de casa e comprar os víveres essenciais para me alimentar.

Rezei muito, como disse acima; li muito, escrevi muito, ouvi boa música, estive em alguns concertos online e fui comunicando com as pessoas através das redes sociais. Mas o que prevaleceu foi um movimento para o interior, uma espécie de retiro de Quaresma e de Páscoa, um renovar espiritual enquanto ia ouvindo as notícias avassaladoras e repetidas à exaustão, muitas vezes alarmando desnecessariamente as pessoas e criando inúteis bolsas de inquietação e de medo.
Aí comecei a fazer ponto pé de flor e inundei amigos e familiares no Natal com breves e simples panos de tabuleiro, combinando tonalidades e linhas retas. Deparei-me com pessoas próximas a viverem obcecadas com os perigos do contacto com os outros, fechando-se em si mesmas numa doentia tática de sobrevivência. Já não suportava as mensagens cheias de “dicas” e sentenças sobre como proteger a própria saúde. Limitei-me a cumprir as recomendações da Direção-Geral de Saúde e mandava as outras mensagens diretamente para o caixote do lixo do meu computador ou do telemóvel. Ficava-me pelas que traziam beleza, alegria e sentido ao meu confinamento. Nesta fase perdi uma pessoa de família muito jovem que partiu de forma violenta e inesperada, o que deixou a minha família devastada e numa fragilidade imensa.
Uma expiração mais longa e um ponto mais curto simbolizam a segunda fase do meu confinamento. Estive a cuidar, num movimento para o exterior: acolhi dois familiares na minha casa, um sobrinho e o seu filho adolescente. A família tinha recentemente comprado a casa e foi forçada a fazer obras profundas as “meninas” ficaram nos sogros do meu sobrinho, os homens ficaram comigo.

Acolhi-os como diz S. Paulo aos Efésios (13.2): “Não vos esqueçais de praticar a hospitalidade; pois agindo assim, mesmo sem perceber, alguns acolheram anjos”: os meus “dois anjos” inesperados, os “refugiados” que me pediram abrigo, os “desarrumados” que viraram toda a minha vida do avesso. De pensar no sacrifício e simples solidariedade familiar, tornei-me uma “hospedeira” de uma qualidade e paciência que não esperava, habituada como estou a viver ao meu próprio ritmo e no meu espaço físico e espiritual.
Vi toda a minha casa devassada – são muito desarrumados e não pensam nesses detalhes quotidianos –, tive de cozinhar duas refeições por dia para duas pessoas sistematicamente esfomeadas (e de tratar das correspondentes compras no supermercado), pois um trabalhava e outro tinha aulas. Tive menos tempo para ler ou escrever, ou mesmo gozar o meu abençoado e geralmente produtivo sossego. Tudo teve de ser negociado com infinita paciência e a firmeza necessária para garantir colaboração nas tarefas domésticas. Mas vi a casa tomada por conversas inteligentes, por gestos delicados e reconhecidos, e muitas, muitas gargalhadas. Cultivei amplamente o meu sentido de humor e aprendi a estabelecer prioridades – nomeadamente com o jovem adolescente de 16 anos preguiçosos e metidos consigo, eivados de alguma impaciência face às exigências de uma tia-avó como eu. Partiram no dia em que escrevo esta crónica, impacientes por se apropriar da casa nova, despedindo-se e dizendo que foram felizes comigo. Experimento uma sensação de alívio e simultaneamente de vazio – afinal habitaram os meus dias ao longo de quase sete meses e encorajaram a uma desinstalação, mas já tenho saudades da sua presença bem invasiva.

Entretanto, de panos de tabuleiro passei a bordar uma toalha, a partir de um lençol usado: as flores vão-se multiplicando em mandalas, ouso maior criatividade e confiança nos meus dotes… Cá fora assistimos ao prolongado momento da saída de Trump da Casa Branca e ao ponto maior do acolhimento de Joe Biden. Assisti preocupada à ascensão do Chega e à emergência de um certo país fragmentado, ferido e desconfiadamente intolerante e egoísta. A boa notícia de as vacinas estarem finalmente a ser aplicadas na nossa população é ensombrada pela constatação de que o perigo e desafio comum que estamos a viver não erradicou o chico-espertismo, a pequena corrupção que corrói e mata, a necessidade de satisfação imediata atropelando os outros.
Se a oração emergiu espontaneamente na primeira fase do confinamento, neste segundo movimento a oração foi escolha teimosa, insistida, repetida, mesmo que só conseguisse balbuciar um Pai Nosso antes de fechar os olhos e dormir. Mas continuei a dar graças a Deus pelo que tenho, pelos gestos solidários e belos de quem vê nesta crise uma possibilidade de maior humanização e crescimento ético e espiritual, pela esperança de que venham dias melhores, mas, sobretudo, no desejo de que esta crise nos converta por dentro e por fora – que seja uma real metanoia: que nos vinculemos ao essencial, que encontremos a alegria das pequenas coisas, que inventemos novos pontos para muitos bordados – convictos de que a beleza e a arte salvam, que a frugalidade se pode tornar uma forma solidária de ter qualidade de vida, que a criação em perigo por causa da nossa cegueira pode encher os nossos corações de generosidade criativa e de amplitude solidária, na certeza de que Deus está presente no horizonte de todas as coisas, especialmente no Bem, na Justiça e no Belo. Que, confinados, confiemos, ainda que não possamos ver. Confiemos na fraternidade e na “amizade social”, ao jeito do Papa Francisco.
Teresa Vasconcelos é professora do ensino superior e participante do Movimento do Graal; contacto: t.m.vasconcelos49@gmail.com.