Precisamos mesmo de milagres?

| 12 Set 2023

Templo Bahá'i em Kinshasa

Inauguração do Templo Bahá’i em Kinshasa, Republica Democrática do Congo. Copyright © Bahá’í International Community

 

– Viste que houve um milagre na JMJ?

A pergunta do meu primo era o corolário dos dias de entusiasmo com a Jornada. Era também o princípio de mais uma das nossas conversas.

– E qual seria o propósito de uma intervenção divina na Jornada?

– Os milagres são um sinal de Deus. Os Católicos acreditam em milagres. Os santos fazem milagres. Cristo fez milagres…

– Mas precisas mesmo de milagres para demonstrar a validade da tua fé? Se não houvesse milagres, o Cristianismo perderia o seu valor e a sua legitimidade?

Fez-se uma pausa. Não era a primeira vez que falávamos de milagres nas nossas conversas sobre religião. Ele, defendendo os milagres como prova da presença divina ou da santidade de alguém; eu, questionando os milagres como sinal de intervenção divina. Numa conversa anterior sobre este tema, tinha dito que há coisas que pareciam impossíveis há alguns séculos e que hoje são perfeitamente normais. Muita da tecnologia que usamos hoje poderia parecer milagrosa para os nossos avós.

Ele quebrou o silêncio:

– A Igreja tem sempre muito cuidado em relação a estes milagres. É sempre feita uma investigação cuidadosa a estes fenómenos…

– E ainda bem que a Igreja tem esse cuidado. Sabes que para mim não faz sentido considerar como intervenção divina os fenómenos que não compreendemos. Acima de tudo esses fenómenos devem despertar a nossa curiosidade. Há tanta coisa neste mundo que ainda não compreendemos.

– Mas Deus é Omnipotente. Por isso não podemos negar a possibilidade de existência de milagres…

– Sem dúvida que Deus é Omnipotente. Mas, ao longo da história, Ele tem dado a conhecer a Sua vontade através dos Seus mensageiros: Abraão, Moisés, Jesus, Muhammad, e mais recentemente o Báb e Bahá’u’lláh. Esse é o tipo de intervenção divina que tem o propósito de influenciar e inspirar a evolução da humanidade. Eu não vejo um propósito nos milagres. E considero que, mesmo que tenham ocorrido, eles até podem ser importantes para quem os testemunhou.

– De qualquer forma, os evangelhos descrevem vários milagres de Jesus. São factos registados na sagrada escritura. Temos de os aceitar.

– Repara… eu como Bahá’í, não nego que Jesus tenha feito milagres. Apenas considero que a divindade de Jesus não se baseia na Sua capacidade para fazer milagres. A divindade de Jesus baseia-se no Seu poder para transformar o coração humano. E isso aplica-se a todos os Mensageiros de Deus. Todos eles fizeram milagres. As escrituras e narrativas de todas as religiões têm registo desses milagres…

– Não houve milagres com os fundadores da Fé Bahá’í?

– Sim, houve, mas é algo que não valorizamos. Deixa-me procurar um texto Bahá’í sobre isso…

Não desejo mencionar os milagres de Bahá’u’lláh, pois talvez se possa dizer que são tradições, sujeitas tanto à verdade quanto ao erro, como os relatos dos milagres de Cristo, no Evangelho, que nos chegaram através dos apóstolos, e não de qualquer outra pessoa, e são negados pelos judeus. Se bem que, se desejasse mencionar os actos sobrenaturais de Bahá’u’lláh, eles são numerosos; eles são reconhecidos no Oriente e até mesmo por alguns não-Bahá’ís. Mas essas narrativas não são provas e evidências decisivas para todos; o ouvinte talvez possa dizer que esse relato pode não estar de acordo com o ocorrido, pois é sabido que outras seitas contam milagres realizados pelos seus fundadores.

Mas o meu primo insistia.

– Essa postura é muito céptica. A maioria das pessoas tem necessidade de acreditar em milagres.

– Mas ao questionar os milagres, eu não estou a pôr em causa a origem divina do Cristianismo. Eu acredito que Cristo foi um mensageiro Divino. Mas é nas Suas palavras que estão registadas nos Evangelhos que reside o poder transformador do Cristianismo. O Sermão da Montanha é muito mais poderoso do que qualquer milagre, a oração do Pai Nosso tem uma beleza que ultrapassa qualquer prodígio. Além disso o próprio texto do Novo Testamento diz que os falsos profetas também podem realizar milagres. Por esse motivo, não consigo valorizar ou acreditar literalmente nas descrições dos milagres que estão no Novo Testamento. Penso que é mais interessante perceber os múltiplos significados metafóricos dessas descrições…

– Tu e o teu fascínio pelo sentido metafórico das Escrituras! Não sei como não te perdes no meio de tanta metáfora…

Não havia sarcasmo nas palavras do meu primo. Conhecemo-nos há muito tempo, percebemos e respeitamos as nossas diferenças, e gostamos dos nossos diálogos. Respondi com um sorriso.

– É exactamente no sentido metafórico que as Sagradas Escrituras têm uma força enorme. Se o texto das Escrituras tem algo que é contrário à razão ou ao conhecimento científico, então devemos procurar o seu significado simbólico. A fé não pode ser contrária à razão. Pode ultrapassar a razão, mas não pode ser contrária à razão. Penso que o Catecismo da Igreja Católica diz algo semelhante…

Mais uma pausa na nossa conversa. E prossegui.

– Tive um professor de Cristologia que nos dizia que 90% das descrições milagrosas existentes nos Evangelhos podiam-se explicar pela psicologia e pela psiquiatria. E quando insistimos muito na importância dos milagres corremos o risco de reduzir a religião a um espectáculo de ilusionismo. Por isso, temos de ter muito cuidado com a conversa dos milagres.

– Mas, como eu disse, a Igreja é extremamente cuidadosa na aceitação dos milagres. Por exemplo, para alguém ser considerado santo, é necessário que seja confirmada a realização de milagres. E há muita cautela na validação desses milagres. Portanto, nem tudo o que a religião popular proclama como milagre é aceite pela Igreja.

A conversa parecia estar a acabar.

– Gostaste mesmo de participar na Jornada, não foi?

– Claro! Foi uma experiência única, inesquecível. Ainda por cima com a presença do Papa.

– Pois eu apenas assisti pela TV e pareceu-me que o mais relevante foram mesmo as palavras do Papa. O que ele disse é mais importante do que o tal milagre.

– Sim, nesse aspecto estamos de acordo.

– Ainda bem que estamos de acordo em alguma coisa.

 

Marco Oliveira é membro da Comunidade Bahá’í de Portugal

 

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