
Debate na Igreja de São Domingos: aqui se realizou a primeira vigília de católicos contra a Guerra Colonial. Foto © Cláudia Teixeira/Comissão Comemorativa 50 Anos 25 Abril.
O Presidente da República está a pensar “ter um gesto simbólico em relação à Comunidade da Capela do Rato”, que pode passar pela entrega da Ordem da Liberdade como sinal de agradecimento pelo “papel mais próximo” que aquela teve nas movimentações que levaram à queda do regime ditatorial do Estado Novo.
Apesar de ainda não ter decidido a forma nem a data, Marcelo Rebelo de Sousa considera que, tal como já se homenagearam os militares e outros sectores e personalidades, “era justo que houvesse um sinal em relação ao contributo cristão nesse processo”.
O anúncio foi feito pelo próprio Presidente no final da sua participação no colóquio que assinalou, na tarde desta quinta-feira, 8 de Dezembro, os 50 anos da vigília que, no final de 1972, na Capela do Rato, um grupo de cristãos ali promoveu para debater a guerra colonial e rezar pela paz.
A iniciativa decorreu na Igreja de São Domingos, em Lisboa, por este ser o local onde quatro anos antes, em 31 de Dezembro de 1968, se realizou uma primeira vigília pela paz, motivada pela situação de guerra em que o país já vivia e pela mensagem de Paulo VI para esse Dia Mundial da Paz intitulada “A Promoção dos Direitos do Homem, Caminho para a Paz” [ver 7MARGENS].
Com a Igreja de São Domingos cheia, o debate contou com a participação, além do Presidente Marcelo, do professor universitário Luís Moita, que esteve em várias movimentações contra a Guerra Colonial, incluindo as duas vigílias; da ministra da Defesa, Helena Carreiras; e do padre António Janela, um dos que que integrava a equipa de presbíteros da Capela do Rato, em 1972. Antes da conversa, o Presidente da República inaugurou uma exposição evocativa da vigília do Rato, que ficará na sacristia da Igreja de São Domingos até 8 de Janeiro.
No debate moderado pela jornalista Cândida Pinto, Luís Moita começou por recordar a mensagem de Paulo VI para o primeiro Dia Mundial da Paz, em 1 de Janeiro de 1968, publicada precisamente a 8 de Dezembro de 1967. Um ano depois, a mensagem para o Dia da Paz de 1968 impulsionou um grupo de cristãos a organizar a vigília de São Domingos. No final da missa de dia 31, foram à sacristia da igreja da Baixa de Lisboa ter com o patriarca – então, o cardeal Cerejeira – dizer-lhe que se predispunham a ficar na igreja a debater livremente e a rezar pela paz. O patriarca pediu-lhes apenas que respeitassem a sacralidade do lugar.
Momento fundador

Exposição na Igreja de São Domingos, evocativa das movimentações de católicos contra a guerra e o regime. Foto © Cláudia Teixeira/Comissão Comemorativa 50 Anos 25 Abril.
Esse foi um “movimento criador da mobilização dos cristãos”, “passivos” desde o início da guerra nas então colónias africanas, recordou Luís Moita. Na vigília, cerca de 150 pessoas leram textos, escutaram ou deram testemunhos, cantaram: “Sophia [de Mello Breyner] redigiu expressamente para essa noite” a sua Cantata da Paz, o poema conhecido como “Vemos, ouvimos e lemos”, que foi cantada ali mesmo por Francisco Fanhais.
“Quando pensámos num novo passo, pensámos na Capela do Rato”, acrescentou Luís Moita. “A guerra prolongava-se, as notícias não eram boas.” E, em 1970, entre as duas vigílias, Paulo VI tivera a “ousadia de receber os três líderes dos movimentos de libertação: Agostinho Neto, Marcelino dos Santos e Amílcar Cabral”, um facto recordado no 7MARGENS pelo historiador João Miguel Almeida.
Se a vigília de 1968 foi inspiração para a do Rato, a outra diferença foi no resultado: esta última, iniciada no final da tarde do dia 30 de Dezembro de 1972, foi brutalmente interrompida pela polícia de choque, que invadiu a capela no fim da tarde do dia 31, prendendo todas as pessoas que ali se encontravam.
Em relação a São Domingos, a vigília do Rato teve algumas semelhanças e diferenças: “Ocupámos um lugar sagrado, mas por um prazo maior; fizemos uma assembleia permanente; adoptámos o jejum como nova radicalidade da forma de luta.”
Houve ainda uma “atitude diferente” de abertura dos meios cristãos em relação ao movimento operário (os sindicatos estavam a organizar-se), aos movimentos estudantis que ganhavam uma “vitalidade enorme” ou mesmo a sectores militares.
O padre António Janela destacou a importância de vários acontecimentos do ano de 1968: o acidente grave do ditador Salazar, em Agosto, as movimentações grevistas e as manifestações de universitários, que levaram ao encerramento do Instituto Superior Técnico durante alguns dias.
“Tudo estava a ferver”, resumiu o padre Janela, que chegou a ser preso e levado para a sede da polícia política (a PIDE-DGS), de onde só saiu depois de o novo patriarca, o cardeal António Ribeiro, se ter ido pessoalmente às instalações da polícia. Na Igreja, um acontecimento “muito grave”, talvez o mais grave, foi o da demissão do padre José Felicidade Alves, então prior dos Jerónimos.
“O que está em causa é a violência”

Um dos momentos do debate na Igreja de São Domingos. Foto © Cláudia Teixeira/Comissão Comemorativa 50 Anos 25 Abril.
“A mentalidade começou a mudar no interior da Igreja”, com várias iniciativas a acontecer, recordou. A censura ainda estava presente – incluindo contra documentos do Papa, onde palavras como “socialização” eram cortadas, por causa da proximidade com “socialismo”. A encíclica Pacem in Terris (1963), do Papa João XXIII, tal como quatro anos depois a Populorum Progresso (1967), de Paulo VI, traduziram a “ultrapassagem” da ideia da paz como ausência da guerra e consequência dos debates sobre a guerra justa e a guerra defensiva para uma paz que assenta em “quatro pilares: verdade, justiça, liberdade e solidariedade”. E “não há paz se falhar” um deles.
António Janela considerou ainda que “falamos de paz mas o que está em causa é a violência”. Dando o exemplo da violência doméstica, dos abusos sexuais ou do abuso de poder, considerou que só a educação para a paz, enfrentando a violência, pode permitir afirmar os pilares citados. Onde cabem ainda a “dignidade da pessoa humana e dos seus direitos, o reconhecimento da universalidade dos bens da terra e a sua distribuição”.
O Presidente da República situou as duas vigílias num processo lento de mudança. Apesar do regime concordatário que “fazia confluir a Igreja Católica com a ditadura, isso não impediu que houvesse cristãos a opor-se” ao Estado Novo: o padre Abel Varzim, o bispo António Ferrera Gomes, os católicos que participaram nas revoltas de Beja ou da Sé de Lisboa contra o regime, os manifestos de católicos que se sucedem em 1961, 1965 e outros, “tendo em conta já a situação em África”, o Grande Encontro da Juventude, com os discursos de Lourdes Pintasilgo e João Salgueiro, a eliminação dos movimentos operários católicos…
“É um processo”, disse Marcelo, ao qual não são alheios vários padres que ensinam Religião e Moral em Lisboa, Porto e Coimbra. E cujo “salto qualitativo” é a vigília da Capela de Nossa Senhora da Bonança, conhecida como Capela do Rato. E resumiu o Presidente: “São Domingos foi a vigília que significou o fim do salazarismo, o Rato significou o fim do marcelismo”, quando Marcelo Caetano, que entretanto substituíra Salazar, ainda não tinha percebido que o regime estava morto.
Lutar pela paz é também lutar contra a fome

Pormenor da exposição que ficará na Igreja de São Domingos até 8 de Janeiro. Foto © 7Margens.
Num debate onde se falava de guerra e de paz, a guerra na Ucrânia e a situação no mundo foram referidas várias vezes. “A guerra não é uma abstracção”, afirmou a ministra Helena Carreiras. “É preciso pensar as condições para a paz, qualificar a paz e adjectivar a paz”, acrescentou, dizendo que ela deve ser “digna, completa, sustentável e universal” e não a paz da “escravidão, da submissão ou da que é mantida pela brutalidade”. “Podemos sonhar com uma paz sem vencedores nem vencidos” e criar condições para que a guerra não se torne banal, disse ainda.
Concordando que não se pode “tratar a guerra como uma abstracção, que ignora” as suas causas, o Presidente referiu-se ao pensamento dos papas João XXIII (1958-1963) e Paulo VI (1963-1978), afirmando que eles transformaram a luta pela paz em algo “de carne e osso: não há paz onde há fome, não há paz onde não há condições económicas e sociais” que permitam uma vida digna.
Por isso, construir a paz no mundo passa por construir a paz na Ucrânia, mas também por “construir a paz em muitos outros sítios” em guerra, disse o Presidente. E passa ainda pelo combate à fome, aos problemas comuns da humanidade e a outras situações graves, como a fome, a miséria, desigualdade ou o subdesenvolvimento.
Nos próximos dias 14 e 15, haverá outros dois debates cujos horários e participantes o 7MARGENS já noticiou. No dia 30, a Comunidade da Capela do Rato promove uma nova vigília pela paz. E em Janeiro, no Jardim das Amoreiras (perto da Mãe de Água, no Jardim mais próximo da Capela do Rato), será inaugurada uma escultura de grandes dimensões da autoria de Cristina Ataíde.
Este ciclo de iniciativas é coordenado pela Comissão das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, com o alto patrocínio do Presidente da República e o apoio da Capela do Rato, da Igreja de São Domingos, da Fundação Calouste Gulbenkian, do Arquivo Ephemera, da RTP e do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica, e das câmaras municipais de Lisboa e de Vila Viçosa.