
“A humanidade do entretenimento tende a esquecer-se de que existem dois remédios 100% seguros contra a depressão, gratuitos, e — literalmente — na mão de todas as pessoas: a leitura e a escrita.” Foto: Alexis Brown / Unsplash
Um estudo publicado pelo Instituto Nacional Ricardo Jorge (INSA) mostrou que 7 em cada 10 portugueses sofreram psicologicamente com a quarentena necessária por causa da Covid-19. E que mais de metade apresentava sintomas de depressão. Aliás, na notícia publicada pelo Observador, Expresso, Lusa e afins, é reportado que o Infarmed terá confirmado um aumento da venda de medicamentos antidepressivos nos primeiros oito meses de 2020 em relação ao ano anterior, provavelmente, associado ao efeito da Covid-19. A humanidade do entretenimento tende a esquecer-se de que existem dois remédios 100% seguros contra a depressão, gratuitos, e — literalmente — na mão de todas as pessoas: a leitura e a escrita.
O Facebook dá a sensação às pessoas de proximidade com aqueles que trocam convites de amizade virtual, mas criou, na prática, um conceito bizarro (no mínimo) de relacionamentos sem relação. Por isso, não é de admirar que a depressão com a situação da Covid-19 não tenha sido resolvida pelas redes sociais. Eventualmente, terá piorado. Mas se as pessoas voltarem o seu olhar para a leitura, em vez do ecrã, encontrarão um mundo imaginativo, e esse, sim, produz um efeito positivo em nós.
Franz Kafka é um dos escritos de referência do século XX, e muitos reconhecem que a única coisa que mantinha a sua sanidade mental, e lhe conferia a capacidade de manter juntas as partes em conflito no interior da sua personalidade, era a escrita. Ou se pensarmos na experiência que a professora americana Erin Gruwell fez nos anos 1990 com os seus alunos de bairros sociais americanos, usando a escrita para que se libertassem interiormente das duras vidas que os assombravam e tornavam violentos, percebo com a escrita pode ter um efeito terapêutico na vida de qualquer pessoa.
Não consegui encontrar o estudo, mas o que os números representam, assim como o conteúdo daquilo que foi questionados às pessoas, orienta-se muito para as preocupações económicas, segurança de emprego, mas não me pareceu que tivesse abordado a questão essencial sobre a diferença entre solidão e solitude. Sem dúvida que as preocupações de natureza económica e profissional são relevantes, mas o recurso aos fármacos para combater uma depressão por causa dos períodos de quarentena, mostram que se insiste em pôr um penso na ferida, mas não se procura enfrentar o que a causa.
Quem sente solidão em vez de solitude, significa que tem ainda por desenvolver a maturidade emocional. Ninguém coloca em questão a importância dos relacionamentos interpessoais para a nossa saúde mental, mas a capacidade para a solitude não é apenas para quando somos crianças e entramos num processo de autoconhecimento das nossas necessidades, sentimentos e impulsos. Esta capacidade é fundamental para a vida adulta, como me parece ser demonstrado nos resultados deste estudo. E talvez tenha chegado o momento de reconhecermos o efeito preventivo que a leitura e a escrita têm em relação à capacidade para a solitude e para aprendermos a lidar com os momentos difíceis de quarentena ou confinamento por causa da pandemia.
A leitura é um hábito que oferece um mundo imaginário onde podemos experimentar como nós e o ambiente que nos rodeia são relacionais e interdependentes. E como tudo está relacionado com tudo, quando lemos, nunca nos sentimos sós. Ler ajuda-nos a amar o lado incompreensível do mundo, e a compreender a faceta do mundo que temos mais dificuldade em amar.
A escritora Jeanette Winterson diz — «eu não penso na leitura como um tempo de lazer ou tempo perdido e, especialmente, como tempo de inatividade. O tempo total de um livro é mais um tempo activo que inactivo, do mesmo modo que um salmão nada contra a corrente para chegar a casa.» Quem perdeu o hábito de leitura, perdeu o sentido de chegar a casa. Vale sempre a pena recomeçar.
Com a escrita, temos, literalmente, nas mãos, uma possibilidade de nos expressarmos sem filtros, deitando para o exterior de nós tudo o que nos preocupa interiormente. Diversos estudos reconhecem que escrever num diário ajuda as pessoas a gerir a ansiedade, reduzir o stress e a lidar com a depressão, tal como Kafta. Escrever ajuda a priorizar os problemas que nos perturbam, os receios e preocupações. Escrevemos aquilo que estamos a viver em cada dia e acabamos por ter uma noção mais fidedigna daquilo dos acontecimentos que mais nos afectam, ajudando-nos a ajustar o nosso estilo de vida. Podemos, inclusive, identificar melhor o que nos perturba, os pensamentos negativos e os comportamentos que desejaríamos melhorar. Escrever todos os dias é como tomar um antidepressivo que, garantidamente, não tem qualquer outro efeito secundário senão o crescimento pessoal inesperado.
Miguel Panão é professor no Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade de Coimbra