
O selo do Vaticano, comemorativo da JMJ Lisboa 2023, no centro do debate. Imagem Vatican Media
Hesitei entre dois títulos: “mais horror”, como que a prolongar a péssima telenovela em torno dos abusos sexuais, ou “profundamente insensata, a minha Igreja”, sublinhando desde o início a ideia que mesmo sendo a Igreja insensata, é a minha Igreja. Optei pela segunda, mas sem dúvida que é sob o signo da vergonha e da tristeza que escrevo estas linhas, depois do choque ao ver um selo do Vaticano sobre a JMJ 2023.
Ao mimetizar meticulosamente a iconografia e estética fascista portuguesa (sim, é exactamente disso que se trata, apimentada com um discreto toque maoísta), o selo transmite, objectivamente, uma mensagem profundamente errada de todos os pontos de vista: social, político, eclesial e teológico.
Convido-vos a olharem para o selo e fazerem um breve exercício de comparação com tantas imagens que, automaticamente, associamos ao Estado Novo. Não é um exercício difícil, mas é um exercício pleno de tristeza e indignidade.
De resto, é francamente impressionante como num só acto se consegue acumular um formidável e avassalador programa de erros, a começar pelos de comunicação e estética, até aos de conteúdos directamente veiculados pelos primeiros.
Ora façamos uma breve exegese do selo.
Parece inevitável que ele nos remete para um passado, remoto e bem datado – os anos 40 do século XX. Onde se exigiria vibração e arrojo, frescura e ideias novas (ainda que bem sabendo das limitações inerentes à JMJ – bastará passear os olhos pela vacuidade do seu site) acabamos por encontrar um arrepiante bafio fascistoide e colonialista que parece continuar a ordenar as ideias de alguns na Igreja.
A adopção inequívoca do figurino do Estado Novo, de tipo eminentemente nacionalista, é agravada pela sua inserção num monumento com uma simbologia bem conhecida de natureza colonialista, sugerindo implicitamente um programa de atitudes, de comportamentos, de acções, de consequências que nada tem a ver com a mensagem de fraternidade universal que se esperaria (ou desejaria?) da JMJ.
A colocação do Papa Francisco naquela pose e papel é mais que errada por duas razões:
a. Porque é colocado na posição de D. Henrique de partida para a colonização além-Atlântico, no mesmo lugar de uma figura histórica ligada à colonização – não se trata de qualquer apreciação, trata-se de ser impróprio evocar esse papel para o Papa, que manifestamente não é o seu, bem pelo contrário;
b. Porque o estilo de líder fascistoide (de que também o Navegador foi vítima) com o toque maoísta de grande dirigente que aponta caminhos (reconhecível entre nós nos murais dos anos 70 com Arnaldo de Matos apontando o caminho às massas operárias e camponesas, sem esquecer soldados e marinheiros) é incompatível com o pensamento e postura sinodal do nosso Papa. Francisco não é nem preconiza um pastor que vai à frente da comunidade que o segue em fila indiana; antes tem defendido um pastor que, inserido na comunidade, a ouve e em diálogo lhe sugere critérios para que os crentes escolham o caminho. A figura do guia esclarecido que aponta o rumo não é inocente, corresponde a uma visão de mundo e de Igreja que choca de frente com a perspectiva anti-clericalista do Papa. De resto subjaz-lhe uma teologia de antanho que Francisco tem recusado ao longo do seu papado.
Todo o conjunto do desenho do selo remete para conceitos como etnocentrismo e colonialismo, e logo quando se pretende construir pontes com outras culturas e continentes.
Eis alguns detalhes mais:
c. os jovens são inapropriadamente mais crianças que jovens, infantilizando-os;
d. um menino de cor – decerto convertido – reza de um modo parvamente estereotipado enquanto é tocado paternalisticamente por uma menina branca mais velha;
e. nenhuma das figuras possui qualquer sinal de contemporaneidade, o que faz um perfect match com o cenário e a estética geral adoptada.

Neste processo, são várias as questões que se colocam, todas graves, e tanto mais se lidas em conjunto.
- Será que na Santa Sé e na JMJ ninguém percebeu quão errado é um selo do Vaticano recorrer a uma imagética nacionalista, que encerra todo um programa cultural, eclesial e teológico completamente errado e contrário ao programa de Francisco, passando assim uma mensagem paradoxal e imprópria?
- Como se chegou a este ponto? Há duas possibilidades: ou a estupidez e ignorância são de tal monta que nem há consciência dos erros cometidos; ou não é um erro e é uma opção consciente, embora desadequada do ponto de vista social, teológico e político. Ambas são trágicas e graves e colocam em causa o Vaticano e, por arrasto, a Igreja portuguesa. Ou talvez seja um pouco das duas: parece que nunca o saberemos porque os responsáveis portugueses da JMJ nada esclarecem, insistindo no absurdo da validade da mensagem. Até mesmo admitindo que a organização portuguesa não tenha tido conhecimento prévio do selo, deveria ter procurado com todas as forças anular a operação de lançamento e nunca vir defendê-lo, cometendo o erro corporativo estratégico e táctico infelizmente bem conforme à história recente da Igreja.
- O artista tem as culpas que tiver, mas mais terá a Igreja por permitir que tamanho erro veja a luz do dia. Os responsáveis deveriam ter tido o pudor e o bom senso de liminarmente impedir que um desenho que transporta inequivocamente a iconografia de uma ditadura fosse assumida pelo Vaticano. Não é, evidentemente, imaginável que não haja uma responsabilidade institucional neste processo. Alguém se vai demitir? Alguém será demitido? Cá, no Vaticano, algures?
- Nada sucedendo, passa a ser legítimo perguntar se a adopção da estética e dos elementos em presença confirma um pensamento saudosista existente na Igreja. Há ou não? (receiam-se as respostas).
- E onde está a (agora tão silenciosa) liderança da JMJ, da responsabilidade de um bispo português sobejamente conhecido por comportamentos marcados pela falta de acerto e discernimento? A este respeito, relembra-se que foi ele quem disse que a JMJ seria “um desígnio nacional” e que Portugal iria “de novo dar novos mundos ao mundo” eclipsando assim a mensagem cristã, inadmissivelmente substituída por uma ideologia profana, nacionalista e serôdia (conforme escrevi num texto anterior). Ora, uma liderança que permite uma exuberante marca ideológica no selo deve permanecer liderança?
- As redes sociais e a comunicação social não deixarão de observar muito negativamente a inequívoca associação da Igreja à imagética fascista, degradando ainda mais a percepção comum já existente, sobretudo a propósito dos crimes de abusos sexuais. Preparemo-nos para mais um ciclo de espancamentos, afinal justos e merecidos (a não ser que sejamos salvos pela TAP e pelo SIS).
D. Carlos Azevedo, bispo português em Roma, pronunciou-se já com clareza sobre o mau gosto do selo e a inadequação da mensagem, o que é bom, se saúda e agradece. Mas falta ainda um passo e que deve ser tomado pela Conferência Episcopal Portuguesa: pedir ao Vaticano que retire imediatamente o selo de circulação, reconhecendo o erro e pedindo desculpa por ele aos católicos e à democracia portuguesa.
Um pensamento final. Anda uma quantidade de gente na Igreja num afã verdadeiramente militante a tentar recuperar a confiança da sociedade, fazendo o caminho das pedras, a alimentar a esperança numa Igreja distinta, sinodal, evangélica e fiel a Jesus; e, de súbito, cai-lhes no colo uma bojarda de canhão vinda do interior dessa mesma Igreja. É por isso que fiz bem em escolher este título: profundamente insensata, a minha Igreja.