No dia de Ano Novo, o padre Tony Flannery, redentorista e cofundador da Associação de Padres Católicos da Irlanda, suspenso do ministério público pelo Vaticano em 2012 pelo seu apoio público à ordenação de mulheres e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, escreveu uma reflexão sobre a relação de Joseph Ratzinger com os teólogos, enquanto prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.
Tony Flannery chegou a ser sondado em 2020 sobre a possibilidade de regressar progressivamente ao exercício do ministério de padre, devendo para isso deixar de falar sobre os temas que tinham estado no foco da sua condenação. O padre irlandês respondeu que há, hoje, bispos e cardeais a defender as posições que ele próprio defendia, sem que sejam incomodados pelo Vaticano. Por isso, recusou a proposta.
No texto que escreveu, Tony Flannery destacou dois elementos sobre o que considerava o sistema “Vaticano Ratzinger” que o condenou, como tal acontecera com muitos outros teólogos: “A primeira era uma convicção total [dos responsáveis do Vaticano] sobre a correcção de suas crenças e práticas. Eles acreditavam que tinham a verdade, toda a verdade, e que ninguém poderia discutir com eles sobre qualquer assunto relacionado à fé e à Igreja.” A segunda “foi a total falta de respeito com as pessoas que consideravam erradas”, ao ponto de não saber quem eram os acusadores ou de não poder apresentar directamente os argumentos de defesa.
A partir de três textos publicados originalmente no Público de 3 de Abril de 2005 – e que devem agora ser lidos com essa referência temporal –, recordam-se aqui alguns dos casos mais conhecidos da era João Paulo II-Ratzinger, de que ressaltava a ideia de que não se podia sair fora da pauta ditada pelo Vaticano.
Bernard Häring: A Igreja que ele ama pede-lhe “servilismo”

Bernhard Häring. Foto © Pater Josef Steinle AMPR, via Wikimedia Commons
Nascido em 1912 e falecido em Julho de 1998, Bernard Häring, especializado em questões morais, é chamado à ordem pela Cúria Romana, em Fevereiro de 1979, depois de, na década de 60, ter sido um dos principais assessores teológicos do Concílio Vaticano II (1962-65). Em causa, está a crítica permanente que Häring, da congregação dos padres redentoristas, faz a vários documentos da Congregação para a Doutrina da Fé, contestando as suas orientações.
Esse desacordo vem de longe: na década de 50, o teólogo publicara A Lei de Cristo, uma obra que é hoje referência na teologia moral. Nela, Häring baseia-se essencialmente na Bíblia, recorre às ciências humanas e rejeita a formalidade jurídica que até aí imperava naquela disciplina teológica.
Em 1967, dois anos depois do Concílio, a pressão de alguns sectores da Cúria Roamna leva o Papa Paulo VI a publicar a encíclica Humanae Vitae, na qual rejeita os métodos de planeamento familiar considerados “artificiais”. Häring é uma das muitas vozes que critica aquele documento.
Sempre com base na Bíblia, o teólogo contesta outras posições doutrinárias do Vaticano – e da Congregação para a Doutrina da Fé, em especial. Razão para que os responsáveis deste dicastério lhe peçam um compromisso de que não voltará a criticar os documentos da Congregação. “Exigia-se, na prática, uma declaração minha de servilismo. Fiz saber que não estava absolutamente disposto a tal, convencido que deveria ser considerado pecado qualquer acção contra a consciência”, afirma Häring no livro Fede Storia Morale, uma entrevista concedida a Gianni Licheri.
Häring continua sujeito a pressões até à sua morte, em 1998, sem que haja reconciliação com o Vaticano. Deixa publicados 85 livros, com mais de 300 traduções nas principais línguas. Em português, a história do seu processo com o Vaticano foi contada, pelo próprio, no livro A Igreja que Eu Amo (ed. Figueirinhas) e várias obras suas estão disponíveis na Editorial Perpétuo Socorro.
As “ambiguidades” de Edward Schillebeeckx
Em 1979, este teólogo belga flamengo, nascido em 1914, membro da Ordem dos Dominicanos, é chamado pela primeira vez a explicar as “ambiguidades” das suas teses sobre Cristo. Edward Schillebeeckx volta ao Vaticano em 1980 para mais “clarificações” e, nos anos seguintes, outras ideias suas sobre os sacramentos – como a proposta de uma celebração para cristãos divorciados – também são sujeitas a pedidos de esclarecimento. Várias dessas suas ideias acabam condenadas em 1984.
“Wojtyla faz uma espécie de restauração eclesiástica. João Paulo II é muito aberto em tudo o que diz respeito aos direitos humanos, mas não no que se relaciona com os problemas da Igreja, da moral e do sacerdócio”, comenta Schillebeeckx.
Johann Baptist Metz, punido em Munique
Alemão, Johann Metz não é punido pelo Vaticano, mas é a primeira vítima doutrinal do cardeal Ratzinger, quando este, na década de 70, é arcebispo de Munique e impede a nomeação de Metz como professor de Teologia.
O teólogo é então considerado o expoente da “teologia política” e acusado de ter importado para a Europa os conceitos da teologia da libertação. Em 1981, o Papa João Paulo II escolhe o cardeal Ratzinger para presidente da Congregação para a Doutrina da Fé. O cardeal alemão vê premiada, deste modo, a sua firmeza doutrinal, que se manifestara, entre outros, contra Metz.
Hans Küng e o o acto “mais cruel”

Hans Küng. Foto: Direitos reservados/Religión Digital
É o primeiro teólogo a ser punido durante o pontificado de João Paulo II. Em 1979, ainda a Congregação para a Doutrina da Fé é presidida pelo cardeal Seper, Küng é proibido de ensinar Teologia na Universidade de Tubinga. “A integridade da fé católica” que, segundo o Vaticano, Hans Küng põe em causa, não lhe dá mais o direito de ensinar em nome da fé católica. Mas a causa imediata seria, pensa o próprio, um artigo publicado no New York Times e Le Monde, em que fazia uma avaliação crítica do primeiro ano de João Paulo II.
Alemão, de origem suíça, nascido em 1928, Küng é um forte opositor do dogma da infalibilidade papal. Pioneiro da teologia ecuménica e inter-religiosa – aos 29 anos, escreveu na sua tese sobre A Justificação, que não havia razões teológicas para católicos e protestantes continuarem separados, e quarenta anos depois um documento católico-luterano deu-lhe razão –, obras suas como Existe Deus? ou Ser Cristão continuam a ser fundamentais na investigação teológica das últimas três décadas.
Nos últimos anos, Küng aprofunda a reflexão ética da teologia, propondo o axioma de que não haverá paz no mundo sem paz entre as religiões. Uma das obras em que desenvolve esse tema está publicada em português (Projecto para Uma Ética Mundial, ed. Piaget).
Em Setembro de 1999, em entrevista ao autor deste texto, confessou que a sua suspensão como teólogo católico – embora continuasse a exercer como padre – foi o acto “mais cruel” que viveu na sua vida. E acusava a Cúria Romana de continuar a “tentar impor o paradigma medieval, anti-Reforma e antimoderno, enquanto muita gente quer continuar em frente, a partir do forte acontecimento que foi o Concílio Vaticano II”.
Leonardo Boff: do “obsequioso silêncio” ao “exercício autoritário do poder”

Leonardo Boff numa Aula pública em defesa da democracia na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Foto © Bruno Alencastro/ Wikimedia Commons
Apesar da profunda atitude de humildade e da sua declaração de que preferia “caminhar com a Igreja que continuar sozinho” com a sua teologia, o brasileiro Leonardo Boff, nascido em 1938, não se livra, em 1985, de ser punido com um ano de “obsequioso silêncio”. Boff deveria aproveitar aquele tempo para reflectir sobre o que o cardeal Ratzinger considerava a utilização acrítica de conceitos marxistas na teologia e a relativização da estrutura hierárquica da Igreja.
O livro Igreja Carisma e Poder está no centro da polémica, mas Ratzinger põe em causa o essencial de toda a obra de Boff. O cardeal brasileiro Eugénio Sales apoia Ratzinger, os seus colegas Paulo Arns e Aloísio Lorscheider estão do lado de Boff. Ganha o primeiro. Não sem que 19 bispos brasileiros escrevam ao Papa a dizer que a punição imposta “parece pouco evangélica, lesiva dos direitos humanos e da liberdade de pesquisa do teólogo, contrária à caridade cristã”. Em 1992, depois de novas pressões de Ratzinger, e coincidindo com a realização da Cimeira da Terra, no Rio de Janeiro, o teólogo desiste de lutar e, num texto cheio de mágoa, anuncia a sua renúncia ao sacerdócio e a consequente saída da Ordem Franciscana. Uma atitude que significava, como dizia Boff em Outubro de 1999 em entrevista, mudar de trincheira “para continuar teólogo da libertação e engajado nas comunidades eclesiais de base”. E que caracterizava o que ocorre na Igreja como “um exercício autoritário do poder, exercido por poucas mãos”. A quase totalidade das suas seis dezenas de títulos está publicada pela Editora Vozes.
O “não idóneo” Charles Curran
A defesa da “legitimidade da dissensão em relação à autoridade” e de teses diferentes das oficiais em temas como a contracepção, o aborto, a homossexualidade, os divorciados, levam o cardeal Ratzinger a considerar Charles Curran como “não idóneo para o ensino da teologia católica”.
O conflito do Vaticano com o teólogo norte-americano, nascido em 1935, começa ainda em 1979, mas a decisão da Santa Sé só é tomada em 1986.
Raymond Hunthausen
Bispo de Seattle (EUA), entre 1975 e 1991, Raymond Hunthausen é adepto da objecção fiscal contra o programa militar nuclear norte-americano, desenvolvido durante os anos da administração de Ronald Reagan. Nascido em 1921, Hunthausen chega a admitir, na sua catedral, a realização de um encontro de homossexuais, concretizando as teses de Curran, das quais se mostra adepto.
Alguns católicos não gostam da atitude do bispo e o Vaticano também não: em 1985, o Papa nomeia um bispo auxiliar com a responsabilidade das áreas de acção mais crítica, esvaziando o poder de Hunthausen.
Alessandro Zanotelli: contra os canhões, denunciar

Alessandro Zanotelli. Foto: Direitos reservados
Italiano, membro do instituto dos Missionários Combonianos, o padre Alessandro Zanotelli, nascido em 1938, é nomeado pelo seu superior, em 1978, para director da Nigrizia, a publicação mais importante da congregação, especializada em temas das igrejas e países do Terceiro Mundo.
Quando a revista começa a denunciar o comércio de armas e diversos factos pouco claros da cooperação italiana com África, políticos como Giovanni Spadolini e Giulio Andreotti reagem, conseguindo do Vaticano a substituição de Zanotelli à frente de Nigrizia. O pedido para que o missionário seja escolhido para perito do Sínodo dos Bispos sobre África, realizado em 1994, não tem resposta favorável do Papa. Zanotelli acaba por ir trabalhar para o Quénia, onde vive durante 15 anos, num bairro pobre dos arredores de Nairobi.
Regressa a Itália em 2002, empenhando-se em causas de apoio à justiça no mundo, ao desarmamento e à paz. A propósito da dívida externa dos países pobres, dizia, em entrevista que lhe fiz, em Janeiro de 2003: “Hoje movemos 1800 mil milhões de dólares cada dia, em tempo real. O incrível é que, sobre esta dívida colossal, de 2500 mil milhões, os países empobrecidos pagam de juros 50 mil milhões de dólares cada ano.”
Eugen Drewermann, sem telefone e sem frigorífico
Alemão, nascido em 1940, padre e psicoterapeuta, Eugen Drewermann confessava em entrevista, em 1994, que continuava a viver sem automóvel, sem telefone e sem frigorífico. O seu título Funcionários de Deus (editado em Portugal pela Inquérito), um livro sobre as disfunções psicológicas do clero, leva o bispo de Paderborn, Johannes Degenhardt, a retirar-lhe a autorização de ensinar como teólogo, em 1991, para o que conta com o apoio do cardeal Ratzinger.
A sua área de investigação procura ligar os recursos das ciências psíquicas à teologia. Mas foi este percurso que acabou por lhe trazer problemas. Luigi Sandri (L’Ultimo Papa Re, ed. Datanews/Demetra, Itália, 1997) faz notar que o Concílio Vaticano II saudara positivamente a psicologia que estuda com maior profundidade a actividade humana, mas que, quando alguém como Drewermann o faz seriamente, acaba condenado.
Jacques Gaillot, bispo de Parténia virtual

Jacques Gaillot, bispo da diocese virtual de Parténia, numa manifestação em 2011. Foto © Marsupilami92/Wikimedia Commons
Nascido em 1935, o francês Jacques Gaillot torna-se um bispo mediático pelas posições pouco ortodoxas que defende em relação a temas como a homossexualidade ou a objecção de consciência e o serviço militar. O seu apoio aos excluídos e aos imigrantes leva-o a contestar em meados da década de 90 as leis do então ministro francês do Interior, Charles Pasqua, contra a imigração.
A direita política francesa não lhe perdoa e consegue que o Vaticano o demita, em 1995, da sua diocese de Évreux. Gaillot é censurado por cantar canções diferentes do resto do coro episcopal e é nomeado com o título de Partenia, uma antiga diocese do actual Sul da Argélia, entretanto extinta. O bispo transforma Parténia numa diocese virtual na internet e recebe a solidariedade de milhares de cristãos por todo o mundo. Apesar de recebido pelo Papa quase um ano depois da destituição, Gaillot não regressa a Évreux.
Em Setembro de 1997, ao ser entrevistado, afirma não ter dúvidas de ter sido demitido por pressões políticas, mas acrescenta que continua a ter múltiplas actividades com populações pobres, sem-abrigo, doentes e marginalizados.
Tyssa Balasuriya
É o único caso em que se pode dizer que o Vaticano acaba por retroceder, depois da pressão da opinião pública – incluindo via internet. Em causa, estão as teses de Tyssa Balasuriya, teólogo do Sri Lanka, sobre o pecado original, o tema da virgindade de Nossa Senhora e a defesa da possibilidade da ordenação de mulheres.
Excomungado em 1997, Balasuriya celebra uma cerimónia de reconciliação um ano depois com representantes do Vaticano e da hierarquia católica do seu país. Inicialmente, a Santa Sé pedira-lhe a assinatura de uma declaração de fé escrita para o efeito. Balasuriya, nascido em 1925, recusa, propondo antes um credo escrito pelo Papa Paulo VI. Um ano depois, é esse texto que o téologo lê, a par de uma declaração em que admite que os seus livros podem ter provocado algumas feridas.
Anthony de Mello
Só em 1998 a Congregação para a Doutrina da Fé resolve mexer nos escritos do padre Anthony de Mello, apesar de terem passado 11 anos sobre a morte do jesuíta indiano, em 1987. Autor de diversas obras (editadas em português pela Paulinas Editora), Tony de Mello tinha sido essencialmente um pregador de conferências e retiros.
Nos livros, o jesuíta escreve contos e histórias que recorrem a diferentes tradições religiosas – incluindo o budismo, o taoísmo e o hinduísmo. A Congregação para a Doutrina da Fé considera que esses textos têm “elementos válidos, provenientes da sabedoria oriental”, mas nada mais. “A revelação, feita em Cristo, é substituída por uma intuição de Deus, sem forma e sem imagens, a ponto de falar de Deus como de um puro vazio”, diz a Congregação, sobre o autor de O Canto do Pássaro. Numa das suas histórias, Anthony de Mello escreve: “As pessoas matam por dinheiro ou poder. Mas os assassinos mais implacáveis são os que matam por ideias.”
Jacques Dupuis
Jesuíta de origem belga, Jacques Dupuis ensina na Índia entre 1948 e 1984. Com a reflexão que essa experiência lhe permite, o teólogo escreve, entre outras obras, o livro Vers une Théologie Chrétienne du Pluralisme Religieux (“Para uma teologia cristã do pluralismo religioso”, Les Éditions du Cerf, Paris). Nascido em 1924, Dupuis exerce o cargo de consultor do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso entre 1985 e 1995, lecciona na Universidade Pontifícia Gregoriana e dirige a prestigiada revista Gregorianum.
Naquela obra, um ensaio de 600 páginas, analisada pela Congregação para a Doutrina da Fé, Dupuis entende o pluralismo religioso não só como um facto, “mas como tendo ele mesmo uma razão de ser própria”. O problema, acrescenta, não é apenas “perguntar-se que papel pode o cristianismo atribuir às outras tradições religiosas históricas, mas procurar a razão última do próprio pluralismo” e “a possibilidade de uma convergência mútua das diversas tradições no pleno respeito das suas diferenças”.
As teses de Dupuis dizem coisas semelhantes às do Concílio Vaticano II (Declaração sobre a liberdade religiosa, Dignitatis Humanae), e às do padre Teilhard de Chardin, ele próprio molestado pelo então Santo Ofício. Mas de pouco essas coisas lhe servem.
Em entrevista ao Público, no final de 2003, Dupuis afirma que, entretanto, o Vaticano o tem deixado “tranquilo”. “O que não quer dizer que a questão esteja terminada – nunca me dirão isso.”
Lavynia Byrne

Livro de Lavinia Byrne “Mulheres no altar”, na edição espanhola.
Freira do Instituto da Virgem Maria Bendita desde 1965, Lavinia Byrne decide abandonar a vida religiosa no início do ano 2000, na sequência de um processo daquilo que a própria considera como reflexo de uma “burocracia sem rosto”. Em 1993, Byrne escreve um livro a defender a possibilidade de ordenação de mulheres, Woman at the Altar (“Mulher no altar”), que a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) não deixa passar no seu crivo.
A congregação presidida pelo cardeal Ratzinger quer que a irmã Lavinia corrija as suas afirmações. Byrne sofre “pressões dignas da Inquisição”, conta a própria. Que acrescenta que a sua consciência deve continuar a reflectir e escrever sobre o papel das mulheres na Igreja e na sociedade contemporânea. Queixa-se, então, da “burocracia sem rosto, que condena as pessoas sem sequer as escutar”, pois os peritos da CDF nem sequer se disponibilizam para a ouvir. Fundamentalmente, por ser mulher: “Temos que ser devotas, rezar muito e ir à missa. Mas parece que só os homens podem representar Cristo.” As mulheres, diz ainda a freira, fazem “alguns dos trabalhos mais arriscados da Igreja Católica, seja entre os necessitados ou em hospitais, escolas e universidades”. Mas isso não chega para aceder ao ministério sacerdotal.
O cardeal Basil Hume, que morrera em Junho de 1999, dissera da freira inglesa que era “uma pessoa respeitada, que faz muito bem”. Mas a defesa feita pelo prestigiado líder da Igreja Católica no Reino Unido não chega. Cansada do processo, Lavinia Byrne resolve sair da congregação religiosa.
Já depois disso, em Outubro de 2000, em entrevista que lhe fiz para o Público, Lavinia Byrne diz mesmo que “sem as mulheres, a Igreja entraria em colapso”. E que “não há nada na Bíblia que diga que as mulheres não podem ser ordenadas”. Licenciada em Letras e graduada em Estudos da Informação, realizadora de programas de rádio na BBC, consultora da Conferência Episcopal Britânica, Lavinia Byrne também tem uma paixão pela cozinha. E é daí que retira a imagem para a Igreja dos seus sonhos: “Quando olho para a Bíblia, vejo, no Antigo Testamento, o leite e o mel. O leite tem a ver com o alimento, o mel tem a ver com a doçura: o sustento e a caridade. No Novo Testamento, encontro o peixe (a riqueza dos oceanos), mas também o pão e o vinho da eucaristia. O pão é a dieta fundamental do evangelho, o vinho é a alegria e a festa que vem de quando se partilha. Desejo uma Igreja que cuide do sustento, do doce, do planeta, da matéria-prima do evangelho e do vinho da festa do espírito. Uma comunidade que seja credível.”
A “Declaração de Colónia” dos teólogos
Em Janeiro de 1989, este documento constitui o culminar dos graves sintomas de ruptura entre o pontificado de João Paulo II e muitos teólogos, que se vinham verificando através de casos isolados desde que Wojtyla fora eleito, uma década antes. Um grupo de 163 investigadores europeus publica um texto, que ficará conhecido como a “Declaração de Colónia”, em que critica o “novo centralismo romano” e a “extensão inadmissível da competência magisterial do Papa”, condenando ao mesmo tempo o processo de nomeação dos bispos e as autorizações necessárias para ensinar em nome da Igreja.
A Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) tenta resolver o problema na origem, publicando uma instrução que torna obrigatório, para os teólogos e professores, um juramento de fidelidade. João Paulo II ratifica esta declaração em 1990 e de novo em 1998.
A ruptura com a extrema-direita católica

Marcel Lefebvre, protagonista do maior cisma das últimas décadas. Foto © Jim, The Photographer
O caso mais evidente é o da Fraternidade Sacerdotal Pio X, fundada pelo arcebispo francês Marcel Lefèbvre, que morre em 1991, com 85 anos, depois de ter sido protagonista do mais importante cisma do catolicismo contemporâneo.
Lefèbvre é um opositor tenaz do aggiornamento do Concílio Vaticano II (1962-65). O reconhecimento da liberdade religiosa, com o consequente diálogo ecuménico com outras igrejas cristãs e abertura a diferentes religiões, são as principais razões dessa oposição. Mas também o abandono do uso do latim nas missas e o mais destacado papel para os leigos e as mulheres são objecto das críticas do antigo vigário apostólico em Dacar (Senegal) que já nessa época (década de 1950) se manifestara contra qualquer tentativa de inculturação do cristianismo na cultura africana.
O próprio sintetizará mais tarde o que a Igreja Católica faz e não deve fazer: “Aceitação dos direitos humanos, direito de existência para todas as religiões na sociedade civil, princípio da laicidade do Estado em relação à Igreja, o ecumenismo, o encontro de Assis [realizado em Outubro de 1986, durante o qual o Papa se encontrou com líderes religiosos de todo o mundo, para rezar pela paz], a visita do Papa à sinagoga e ao templo luterano de Roma, as mudanças na liturgia e na catequese, o espaço concedido aos fiéis e às mulheres no campo religioso.”
Como superior geral dos Missionários Espiritanos, congregação em que se fizera padre, Lefèbvre integra a comissão de preparação do Concílio. Mas, reconhecendo a sua derrota, mesmo no interior da congregação, funda em Friburgo (Suíça), em 1969, a Casa São Pio X, onde pretende promover as suas ideias, homenageando com o nome o Papa que, no início do século XX condenara o modernismo. No ano seguinte, lança o seminário de Êcone, onde apenas se usa o latim, destinado à formação do clero integrista.
É nesse lugar que, em 1988, o arcebispo consuma a sua cisão com o Vaticano, ao ordenar quatro bispos contra a autorização do Papa – já João Paulo II – e com o objectivo de assegurar a validade da sua sucessão (a Igreja considera que a sagração de um bispo é válida desde que tenha sido feita por outro bispo). Antes, ficam para trás os passos que levam à ruptura, ainda com o Papa Paulo VI: em 1975, o Vaticano retira aprovação canónica ao seminário, o arcebispo é suspenso das suas funções após ordenar os primeiros padres e em 1978, um encontro do recém-eleito João Paulo II com o arcebispo rebelde nada resolve. A ordenação dos bispos leva o Vaticano a afirmar que está consumada a excomunhão.
Ordens religiosas controladas

Pedro Arrupe, geral dos jesuítas que sobrevivera a Hiroshima. Foto: Direitos reservados.
Apesar das diferentes vocações e carismas, Jesuítas e Paulistas têm uma história comum: o Vaticano meteu-se na vida interna de ambos os institutos religiosos por considerar que as coisas estavam a ir por caminhos pouco seguros. Em Agosto de 1981, o padre Pedro Arrupe, geral dos jesuítas – que vivera, desde 1938 e durante largos anos no Japão, onde sofreu e assistiu às consequências da bomba atómica – tem uma trombose. A sua liderança tinha sido determinante para abrir a Companhia de Jesus a uma acção mais empenhada em favor dos desfavorecidos. Mas, depois de convocada a congregação geral para o substituir, o Papa nomeia um “delegado pessoal” para pôr ordem e controlar os avanços favorecidos por Arrupe. Só dois anos depois os jesuítas podem reunir a congregação, elegendo para geral o padre Peter-Hans Kolvenbach.
A cena repete-se com os Paulistas. Em Março de 1997, por intervenção directa do Vaticano, a linha editorial da Famiglia Cristiana, a maior revista católica do mundo (milhão e meio de exemplares por semana), é posta em causa e o Papa nomeia um delegado pontifício para pôr ordem no instituto religioso. Cardeais da hierarquia italiana e do Vaticano não gostam de ler na revista textos sobre a homossexualidade e o pluralismo teológico, com títulos como “À procura de si mesmo”, “Um filho homossexual: Como tratar dele em família”, “A Palavra é única, muitos são os ecos”.
Uma linha editorial demasiado “liberal”, como então afirma o cardeal Ratzinger – quer no conteúdo, quer nos nomes que colaboram – levam a sucessivas chamadas de atenção. As divergências entre o superior geral e o superior italiano da congregação religiosa (com o último a contestar a orientação das publicações) são aproveitadas pelos bispos e cardeais para pressões várias. Pelo meio, o director da Jesus – a revista do grupo editorial para questões teológicas – é forçado à demissão, e o superior geral, padre Silvio Pignotti, é chamado várias vezes ao Vaticano. Há receio pelo “perigo” de distorsão a que os textos poderiam ser sujeitos, dizem os cardeais; esse perigo existe até com as homilias da missa, contrapõe Pignotti.
O padre Leonardo Zaga, director da Famiglia Cristiana durante 17 anos, diz que nunca ninguém lhe impôs nada e manifesta-se contra as pressões, mas o cardeal Camillo Ruini, consegue do Papa a nomeação do bispo Antonio Buoncristiani como delegado pontifício. Para evitar o “impacto negativo na eficácia do apostolado e na vida interna da própria família religiosa” que o arrastar da situação traria, como justifica o Vaticano.
Um ano depois, em assembleia da congregação, o bispo tenta conduzir a reunião de modo a conseguir pôr à frente dos paulistas alguém da confiança do Vaticano. A assembleia resiste à tentativa de manipulação, exige o cumprimento do Direito Canónico, manifesta-se unida no essencial, ao mesmo tempo que escolhe uma novo responsável geral, o padre Pietro Campos. A linha editorial das revistas não é, no essencial, posta em causa.
Aberturas alemãs? “Nein!”

Cardeal Walter Kasper. Foto: CTV/Wikimedia Commons
Dois rotundos nein recebe o episcopado alemão a outras tantas experiências de abertura pastoral, mesmo sem ferir princípios doutrinários considerados infalíveis pelo Vaticano. O primeiro é em 1993, quando três bispos alemães (incluindo o presidente da Conferência Episcopal, Karl Lehmann, e o cardeal Walter Kasper, entretanto nomeado para presidir, no Vaticano, ao Conselho Pontifício para a Unidade dos Cristãos) escrevem uma carta sobre os divorciados que pretendem casar de novo pela Igreja.
Sem colocarem em causa o princípio da indissolubilidade do matrimónio, os bispos afirmam que um divorciado poderia comungar se concluísse, em consciência, que o anterior casamento tinha sido nulo e “invivível”. Um ano depois, o cardeal Ratzinger contraria essas ideias e o Papa recorda de novo que as pessoas nessa situação devem abster-se de comungar.
Em 1998, por causa do aborto, nova cena de discórdia: o Vaticano insta os bispos alemães a fechar as portas dos 260 centros de atendimento a grávidas mantidos pela Igreja. Na Alemanha, ninguém pode fazer um aborto sem um certificado de consulta de um centro deste género, seja religioso ou civil. Para o Vaticano, o documento passado pelos centros católicos de aconselhamento é uma forma de aceitação do aborto que não pode ser tolerada. Os bispos alemães dizem que a passagem das grávidas pelos serviços da Igreja é a melhor forma de dissuadir muitas mulheres que pretendem abortar.
Quase todos os centros acabam por fechar em 2001 e, em Março de 2002, encerram também os da diocese de Limburgo (onde se incluem as cidades de Frankfurt e Wiesbaden) é obrigada a encerrar os únicos que se mantinham abertos. Vários grupos de católicos criam a associação Donum Vitae (Dom da Vida), através da qual asseguram a continuidade de vários dos centros encerrados pelas dioceses.
A tenaz contra a Igreja da teologia da libertação

Tribos isoladas na Amazônia brasileira, imagem aérea em 2010: a defesa das comunidades indígenas e o seu papel na Igreja era um dos temas defendidos pelos teólogos da libertação. © G.Miranda_FUNAI_Survival (1)
Quando é eleito Papa, Karol Wojtyla tem na América Latina uma Igreja Católica empenhada na luta pela promoção dos mais pobres, pelo fim da miséria e na denúncia das ditaduras. Com os mais importantes bispos e teólogos adeptos da “teologia da libertação”, o conjunto do episcopado latino-americano tinha definido esse caminho para a actuação da Igreja no continente, na sua conferência plenária de Medellin, em 1968.
Para as origens polacas de João Paulo II, que várias vezes se enfrentara com as autoridades comunistas do seu país, os métodos marxistas de análise da realidade usados pela teologia da libertação não são, no entanto, aceitáveis. Por isso, quando em 1979, quatro meses depois de ser eleito, o Papa faz a sua primeira viagem, para estar com todos os bispos latino-americanos reunidos na assembleia plenária de Puebla, verificam-se os primeiros sinais de que aquelas opções não terão vida fácil. Wojtyla aproveita para falar aos bispos da necessidade de defender a verdade, de “vigiar pela pureza da doutrina”, da importância da unidade da Igreja. As tarefas prioritárias que ele aponta aos bispos são a família, as vocações sacerdotais e os jovens. Sobre a “opção preferencial pelos pobres”, o Papa só falará em outras ocasiões da mesma viagem – a primeira do pontificado. João Paulo II não deixa de alertar para o que considera ser as “releituras” do evangelho: “Elas causam confusão ao afastarem-se dos critérios centrais da fé da Igreja” e os bispos devem afirmar “a fé da Igreja” contra tais desvios.
Está dado o mote. As chamadas de atenção prosseguem em encontros do Papa com os bispos de cada país. Em 1984, o Vaticano redobra a pressão: a Congregação para a Doutrina da Fé, presidida pelo cardeal Joseph Ratzinger, publica uma Instrução sobre Alguns Aspectos da Teologia de Libertação, fazendo basicamente os alertas e as condenações que o Papa fizera em Puebla. Os bispos brasileiros reagem, encontram-se com João Paulo II e, dois anos depois, uma segunda instrução atenua a primeira, propondo a validade e o reconhecimento de alguns aspectos positivos na teologia de libertação.
Este documento, no entanto, é um presente envenenado – o caminho já está minado por uma tenaz que se aperta. Lenta, mas seguramente, os bispos nomeados para os lugares que ficam vagos são preenchidos por padres mais conservadores, que se opõem a uma acção considerada demasiado política.
A formação do clero – uma das prioridades apontadas por João Paulo II em Puebla – passa a ser centralizada em Roma. Mesmo geograficamente, com a criação de casas especiais de formação ou de novos institutos religiosos como os Legionários de Cristo (onde os seminaristas têm aulas na casa onde vivem e vestem sotaina e batina durante todo o dia).
Politicamente, nas suas viagens aos países latino-americanos, o Papa critica os governos ditatoriais e desrespeitadores dos direitos humanos. Mas, dentro da Igreja, os que se opõem com mais vigor às mesmas forças continuam a ser castigados. E são acarinhados pelo Vaticano os movimentos de cariz mais conservador, que se preocupam pouco com qualquer transformação sócio-política e mais com as devoções tradicionais dos católicos. Os movimentos de evangelização carismática, com nomes como os do padre Marcelo Rossi, tentam responder ao avanço de grupos evangelistas como a Igreja Universal do Reino de Deus, usando métodos muito semelhantes aqueles que contestam.
João Paulo II lutara pelo fim do comunismo no Leste europeu e não queria ver os países da América Latina adoptar esse regime político. Em 1996, em viagem para a Guatemala, o Papa relaciona os dois casos: “Depois da queda do comunismo, a teologia da libertação também caiu.”