Nas margens da filosofia (XXXVIII)
“Se recordo quem fui, outrem me vejo, e o passado é o presente na lembrança.”
Fernando Pessoa[1]

O despojamento das nossas lembranças impede a consciência do nosso eu, desliga-nos do mundo e dos outros. Foto © ElenaZ.
Há uma altura da nossa vida em que aparecem as falhas de memória. E começamos a recorrer a recordações colectivas, perguntando aos nossos amigos: quando foi? quem era? como se chamava? quem esteve presente? e outras questões do mesmo tipo. Esta perda angustia-nos e preocupa-nos, não só porque as recordações do passado são parte determinante do presente que somos, mas também porque gastamos tempo a lembrar autores e teorias que esquecemos, a procurar coisas que perdemos, a reconstituir episódios e datas importantes que devíamos ter presentes. O despojamento das nossas lembranças impede a consciência do nosso eu, desliga-nos do mundo e dos outros, transforma-nos em seres inconsistentes, destituídos de referências e de afectos, desconfiados do mundo, temerosos de tudo pois tudo se apresenta como possível ameaça.
Muitos autores escreveram sobre as perturbações da memória bem como as suas consequências. Lembro três romancistas que particularmente me impressionaram quando abordaram este tema. António Muñoz Molina, no seu livro Os Teus Passos nas Escadas, fala-nos de alguém que começou a viver num mundo imaginário e que paulatinamente foi alterando recordações e hábitos, ao ponto de lhe ser difícil resolver os pequenos problemas do quotidiano, uma situação aparentemente banal mas preocupante quando se repete:
“Já sei que não posso confiar nas minhas faculdades mentais. Esqueço-me de coisas essenciais de agora e perco o tempo e a memória em lembranças inúteis de há muitos anos, ou de histórias que li nos livros. Procuro alguma coisa e não a encontro onde devia estar. Vou sair e procuro as chaves, a carteira ou o telemóvel e perco muito tempo a examinar todos os lugares possíveis onde posso tê-los deixado. Parece que as coisas se escondem de mim em recantos imprevisíveis, às vezes até inacessíveis.”[2]
Igualmente ligado à memória, mas abordando agora a anulação total da mesma devido a um acidente, é o romance de Umberto Eco A Misteriosa Chama da Rainha Loana.[3] Aqui o caso é mais grave, pois trata-se de uma perda de identidade em alguém que continua a pensar e a sentir mas sem saber quem é, desconhecendo a mulher e os parentes, as suas amizades, as suas opções políticas. A reconstrução da sua história é feita a partir das informações dadas pela família e pelos amigos, numa descoberta progressiva da sua personalidade a partir de livros e objectos que lhe eram familiares.
Também Jorge Luís Borges se debruçou sobre a memória, tratando-a agora na sua vertente de excesso. No conto “Funes, O Memorioso”[4], apresenta-nos um personagem dotado de uma memória excessiva, devido a um acidente. Esta anomalia leva-o a sobrevalorizar os pormenores e impede-o de pensar pois não consegue distanciar-se da avalanche de recordações que permanentemente o assaltam. Para ele não há diferença entre passado e presente, a sua vida situa-se num “agora” atravessado por lembranças e sem possibilidade de se distanciar delas. Na situação de Funes, viver é apenas lembrar sendo-lhe interdito qualquer tipo de esquecimento.
Contrastando com os problemas ligados às perdas de memória, um eminente psiquiatra, Scott A. Small, fala-nos das vantagens dos mesmos, considerando que o apagamento de lembranças é essencial para uma vida equilibrada e sustentando que o esquecimento é cognitivamente benéfico.[5] Neste livro que é um consolo para todos os desmemoriados, debruça-se sobre as vantagens do esquecimento no equilíbrio psíquico de todo o ser humano. Segundo Small, no processo natural de envelhecimento, a existência de uma memória fotográfica pode constituir uma ameaça. Um cérebro destituído da capacidade de esquecer levantaria enormes problemas.
Note-se que as teses que este eminente psiquiatra defende sobre as falhas de memória, considerando-as naturais a partir de certa idade, não o desviam de um estudo aturado das diferentes zonas do cérebro e das suas lesões, nomeadamente as provocadas pela doença de Alzheimer. Interessaram-lhe sobretudo as terapias possíveis para as recordações negativas, nomeadamente os traumas provocados por guerras. Para estas e outras perturbações comportamentais resultantes da vivência de situações de stress, recomenda a necessidade de convívio social.
Aconselho este livro – técnico mas escrito em linguagem acessível a leigos – a todos aqueles e aquelas que se preocupam com falhas de memória. Na maioria destes casos, Small encara-as positivamente, enquadrando-as no processo natural de envelhecimento e vendo nelas aspectos positivos pois, como escreve: “(…) um cérebro com memória e destituído de esquecimento lastimosamente falharia na vivência de todos os aspectos de uma vida com sentido.”[6]
Maria Luísa Ribeiro Ferreira é professora catedrática de Filosofia da Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa
Notas
[1] Fernando Pessoa, Odes de Ricardo Reis, Lisboa, Ática, 1959, p. 107.
[2] António Muñoz Molina, Os Teus Passos nas Escadas, Lisboa Relógio D’Água, 2020, p. 200.
[3] Umberto Eco A Misteriosa Chama da Rainha Loana, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005.
[4] Jorge Luis Borges, Ficções, Lisboa, Livros do Brasil, 1969, pgs. 115-125.
[5] Scott A. Small, Forgetting. The Benefits of Not Remembering, New York, Crown, 2021.
[6] “(…) a brain with memory and not forgetting would miserably fail at living all aspects of a meaningful life.”, ob. cit., p. 40.