
Ilustração © Aquarela original de Susana Braguês para esta publicação
Esta foi a história de quando comprámos a primeira casa na Bielorrússia. Os Missionários Redentoristas escolheram uma área ainda não residencial, onde iam chegando muitos deslocados. À frente da casa, uma estrada de terra. Lama, na maior parte do ano. Por facilidade e iniciativa, um companheiro redentorista foi em nome de toda a gente da rua até ao gabinete de urbanismo da câmara lá do sítio. Os pedidos eram dois, e simples: “Por favor, tragam as tubagens do gás natural até aquela zona para podermos ter aquecimento nas casas, e ponham alcatrão na nossa rua.” Sem o aquecimento não se pode viver naquela região…
Uns rublos depois – uns dias depois, queria eu dizer – apareceu por lá uma maquinaria pesada, um daqueles rolos a alisar a terra. E adeusinho. Passou uma semana e mais outra sem que o alcatrão chegasse. Voltou lá ao gabinete o meu confrade. “Sim, sim, já está alcatroada. Olhe aqui.” E foi-lhe mostrado um mapa todo apresentável em que se via o milagre. Os da nossa rua juravam que não, mas mudou coisa nenhuma. Voltaram para casa, entre a perplexidade e a fúria.
“Olhemos por outro lado: até pode ser melhor assim – disse o meu companheiro numa reunião com a gente do lugar – porque ainda não canalizaram o gás para aqui, e é bom que o façam antes do alcatrão”. Lá voltaram: “Podem então canalizar o gás para tratarmos do aquecimento nas casas?” A resposta foi surpreendentemente favorável e clara. Mas cara… Pediam o equivalente a quase 7.000 euros para isso. A justificação? “Porque teremos que levantar o alcatrão todo para fazer passar os tubos do gás, e depois voltar a pôr alcatrão.” “Mas não tem alcatrão!” “Tem tem, olhe aqui”, e lá vinha o indesmentível mapa, até com o brasão da cidade no cantinho.
Aqui entre nós: os Redentoristas professam um quarto voto no dia da sua consagração. Esse voto é o da “Perseverança”. É por isso que consegue ser bicho teimoso. O meu confrade levantou os colarinhos do carisma, arregaçou as mangas do quarto voto, e não largou enquanto não marcou uma vistoria com uma equipa técnica, não só de responsáveis do urbanismo mas também da peritagem do gás natural. Iriam ver in loco a situação.
No dia marcado, lá estavam todos, com os seus capacetes de plástico amarelo e coletes. Os dois Redentoristas a recebê-los, juntamente com os vizinhos que apareceram. “Como podem ver, a rua está ainda em terra batida, por isso pedimos que nos tragam o gás natural e depois nos ponham aqui um tapete de alcatrão”. As duas equipas de peritos, cada um mais calmo e solícito que o outro, olharam para a rua, abriram um mapa bem grande em cima do capô de um carro, orientaram os dedos sapudos sobre o papel e confirmaram: “Olhe que não, veja aqui: está alcatroada pois. Já há dois meses.”
E no meio do silêncio incrédulo que se fez, ouviu-se a tal da Perseverança ao longe, assobiando enquanto dobrava a esquina e se ia embora dali, a ver se arranjava 17.000 rublos de alguma maneira.
Eu lembro-me tanto desta história quando em Igreja a gente se põe a falar de algumas coisas.
Rui Santiago é missionário redentorista e presbítero católico.