
“Tantas crianças abusadas por membros do clero! Como foi possível? Foram e são crianças, senhores! Exatamente aquelas que Jesus indicou como o foco do amor e da atenção, na sua imensa fragilidade e ternura: as crianças, os indefesos, os pobres, os que choram, os famintos, os presos, os negligenciados, os desamparados, os excluídos, os “pequeninos.” Foto © Gerd Altmann / Pixabay
A Igreja Católica que está em Portugal atravessa um momento crítico e difícil. A divulgação do relatório da Comissão Independente sobre Abusos Sexuais de Crianças na Igreja (que realmente fez um bom trabalho, com pessoas que muito estimo e admiro), veio aparentemente abalar uma instituição multisecular e lançar muito mais pessoas contra esta Igreja e contra o seu Deus. Alguém que prega uma coisa e faz exatamente o oposto não merece crédito nem se dá ao respeito.
Tantas crianças abusadas por membros do clero! Como foi possível? Foram e são crianças, senhores! Exatamente aquelas que Jesus indicou como o foco do amor e da atenção, na sua imensa fragilidade e ternura: as crianças, os indefesos, os pobres, os que choram, os famintos, os presos, os negligenciados, os desamparados, os excluídos, os “pequeninos”. O que lhes fizestes a mim o fizestes, disse Jesus.
Isto não pode acontecer. Não deveria ter acontecido, é verdade que acontece e não pode voltar a acontecer.
Há uns dez anos caí, mais ou menos inesperadamente, nos braços da imensa fragilidade humana. Desde aí e do meu contacto diário com adolescentes que foram abusados, negligenciados, abandonados e maltratados, tomo a palavra para aqui deixar uma nota de preocupação, pois também eu sou um desses, dos que se dizem seguidores de Jesus.
Sinto na minha pele a fragilidade humana, não me autorizo a atirar pedras a quem quer que seja. Mas sinto que este é o tempo propício, não há outro, porventura menos doloroso ou menos mediatizado, para aplicar a justiça, aprofundar a misericórdia e tudo fazer para que esta miséria não se repita.
Palavras “aggiornate” não bastam
Ouvido o dito e o não-dito, os pedidos de “perdão” e a assunção da “vergonha”, creio que ainda fica quase tudo por dizer e fazer. As palavras usadas, sempre as mesmas (talvez não haja outras), impostas antes de mais pela pressão política e mediática (e que prevaleceram sobre opiniões divergentes de vários “dirigentes” da Igreja), exprimem sobretudo o “politicamente correto”. Todos repetem as palavras “certas”, cada vez mais disciplinados, emitindo ecos titubeantes e acanhados das palavras certeiras e muito duras do Papa Francisco.
Mas as palavras aggiornate não bastam. Temo que pouco mude ou que só mude a fala ou a estratégia de comunicação, que bem pode ser algo que vem de fora para dentro, aconselhada por “peritos”, colada com cuspe, como quem aconselha o primeiro-ministro a dizer, num certo debate televisivo, sete vezes a palavra “esperança” e a usar quatro vezes a palavra “segurança”, pois nesse momento é isso que os estudos de opinião revelam que as pessoas “precisam” de ouvir.
O próprio futuro, o que fazer a partir de agora, é enunciado com outro slogan recorrente e gasto, a “tolerância zero”. Ou seja, um saco cheio de nada: diz-se tudo o que se impõe dizer, nada dizendo de concreto que parta das entranhas e seja digno de novo crédito, que soe à autoridade de Jesus de Nazaré e mereça o benefício da dúvida. Seguir um guião faz parte de uma tática de defesa (e até tem incluído com contra-ataques) e pode vir a servir sobretudo uma estratégia de fechamento.
A minha questão é esta: e se se calassem?

“E que se instituam fortes dinâmicas de entreajuda e de correção fraterna, que se acabe com esses antros bafientos das sacristias e dos confessionários e com essa gravíssima doença eclesial do encobrimento (destes abusos e de tudo o mais).” Foto: DR
A minha questão é esta: e se se calassem? E se nos calássemos? E se fizéssemos silêncio e nos retirássemos por quarenta dias e quarenta noites para o “deserto”? Porque não dizem a toda a gente que nos vamos calar algum tempo para escutar em silêncio e de novo, pausada e interiormente, uma e outra vez, as vozes das vítimas, vozes estas que ecoarão dentro de nós, agora enleadas com a voz do Espírito Santo?
O problema de fundo é que não estamos apenas perante um ou outro mal que é praticado aqui e ali, por este ou aquele padre doente e frágil, é a banalização institucional desse mal, o encobrimento como prática comum, a responsabilização das vítimas como uma reincidência na perversidade.
O dia seguinte não podem ser sobretudo palavras. A revisão do clericalismo (que, como diz o Papa Francisco, é uma perversão da Igreja e é assunto que diz respeito a todos) e do abuso persistente do poder eclesial, o urgente reordenamento da formação dos padres, da sua inserção social e da sua formação permanente, a revisão da moral sexual da Igreja, o fim inadiável dos ambientes bafientos e não-cuidados, não-seguros, em que decorre uma grande parte das atividades “pastorais” com crianças e jovens, tudo isto tem de integrar um caderno-de-encargos-para-o-dia-seguinte. Um dia seguinte que foi prévia e abundantemente anunciado e que deveria ter sido antecedido pela elaboração cuidada deste caderno de encargos para apresentar à comunidade e para aplicar de imediato. Quem se sente fortemente questionado, não adormece. Parece que a grande maioria dos clérigos da Igreja e dirigentes leigos ficou à espera para verificar o tamanho dos danos para depois então decidir o que dizer e fazer.
Este tem de ser um tempo novo, que precisa de ser muito cuidado, refletido, multidimensionalmente estruturado, que exige uma profunda metanoia, requer novos olhos, corações renovados, novas regras e procedimentos, a disponibilidade para um outro tipo de convivência humana, de organização eclesial e de presença da Igreja na história (e parte integrante do atual caminho sinodal). É todo um modo de ser pessoa e de ser cristão que está em questão e isso, ainda que pressionado de fora para dentro, só será a valer quando passar a sair de dentro para fora.
Tem mesmo de se traduzir em vidas imersas na fragilidade humana, próximas dos mais pequeninos e vulneráveis, de todos os abandonados, violentados e sem esperança, e apostadas na sua promoção como pessoas inteiras e dignas, ou seja, um investimento, claro e sem descanso, no amor excessivo: Ou seja, reconhecimento, cuidado, proximidade, respeito e uma inabalável promoção do outro, até ao dia em que podemos dizer: levanta-te, toma a tua enxerga e caminha. Ser de Cristo (e seu público e “certificado promotor”) exige isso, não menos do que isso, nunca menos do que estar no exigente caminho de isso alcançar, e imersos em dinâmicas de entreajuda e de comunidade, pois sozinhos, cada um por si, não vamos lá chegar. Amar desmedidamente todos e cada um dos pequeninos, tendo as crianças no centro, como exemplo, esse parece-me ser o sulco principal do caminho que evita a repetição destas monstruosidades. Só esse amor nos salva! A todos e a cada um(a).
E que se instituam fortes dinâmicas de entreajuda e de correção fraterna, que se acabe com esses antros bafientos das sacristias e dos confessionários e com essa gravíssima doença eclesial do encobrimento (destes abusos e de tudo o mais), e que se instituam mecanismos muito rigorosos de prevenção deste tipo de abusos (que não é nada de novo e vigoram há vários anos em algumas instituições da Igreja). E que, desta vez, se envolvam os leigos em tudo e sem medo, mulheres e homens, mais velhos e jovens, as vozes concordantes e as dissonantes, e que comecem, também por aí, a tornar muito claro que isto não vai voltar a acontecer.
Não, não é de palavras que estamos sedentos, de guiões ou planos de comunicação. Poderão mudar todas as palavras e tudo ficar na mesma. Provavelmente é o que irá acontecer. O caminho é mesmo bastante mais árduo, complexo, estrutural e longo. É preciso muita coragem para nos deixarmos cair no imenso buraco que se abriu debaixo dos pés; mas sabemos bem que é a queda que nos pode salvar: romper com o passado, iluminar novos olhares e mudar mesmo o coração. Certo é que o Espírito do Senhor está lá no fundo à nossa espera, sempre, com o seu amparo e o incentivo ao discernimento.
Se quisermos apenas remendar um lençol rasgado e ainda por cima com bocados do mesmo tecido velho e gasto, tingido de outra cor, ninguém vai acreditar que não vai voltar a acontecer.
Quarenta dias e quarenta noites de deserto não serão suficientes, mas podem representar um bom (re)começo. Para que nunca mais volte a acontecer e, caso aconteça, uma chuva de claridade, justiça e reparação entre imediatamente em ação. Doravante, serão ainda mais os gestos dos cristãos, não as suas palavras, que serão ouvidos.
Joaquim Azevedo, professor universitário jubilado, criador e coordenador do Arco Maior