
“…a atenção e os gestos de amor pelo homem ferido (a esmola)” .[Voluntários na associação Virar a Página, em Braga, a preparar refeições solidárias. Foto © Catarina Soares Barbosa.]
Começou o tempo da Quaresma. Tempo favorável (cfr. Isaías 49,8) e de conversão proposto, todos os anos, aos cristãos. É um tempo muito especial por culminar no acontecimento mais importante do cristianismo: a celebração da Páscoa. A sensação que se pode apoderar de muitos de nós é que se trata de mais um tempo ritual sem consequências de mudança na vida dos seus destinatários e, por eles, na da Igreja em geral.
Pessoalmente, confesso que poderia aproveitar sempre mais desta oportunidade de renovação interior e de atitudes perante os outros que a Quaresma me propõe. Quase sempre é mais uma Quaresma. O que, em cada ano, se apresenta sempre como uma novidade é a mensagem que os papas dirigem aos católicos. Sempre interpeladoras, mas não sei se lidas pela maioria daqueles a quem ela se destina. Deveria ser obrigatório que, em cada domingo quaresmal, fosse lida uma parte do texto e proposta uma ação prática a realizar ao longo da semana.
Bem sabemos que, todos os anos, somos convidados à prática de três procedimentos tradicionais, mas que não muito valorizados por, possivelmente, já se tornarem figuras de retórica, mais que compromissos concretos de conversão que é o maior apelo deste tempo litúrgico. Refiro-me ao jejum, à oração e à esmola. Considero, por isso, que, sem ferir a sua essência, se poderia mudar a terminologia do primeiro e terceiro preceitos. Na sua mensagem, o Papa Francisco sentiu necessidade de, mais uma vez, explicitar o que estas propostas de compromisso quaresmal querem dizer. Cito: “O caminho da pobreza e da privação (o jejum), a atenção e os gestos de amor pelo homem ferido (a esmola) e o diálogo filial com o Pai (a oração) permitem-nos encarar uma fé sincera, uma esperança viva e uma caridade operosa.”[1]
Mas, permitam-me que realce alguns dos aspetos que na mensagem mais suscitaram a minha curiosidade. Desde logo o título: “Vamos subir a Jerusalém…” (Mateus 20, 18) reforçado num subtítulo que é o que utilizei como título deste meu modesto texto. Esta opção de Francisco sugere-me duas interpretações. Uma primeira que é o convite a subir à cidade onde nos confrontamos com aquilo que o ser humano tem de melhor e de menos bom. Em poucos dias, Jesus experimentou isso na sua entrada triunfal em Jerusalém (cfr. João 12,12-16) e, passados poucos dias, no seu processo de julgamento, condenação e morte (cfr. Jo 18, 1-40; 19, 1-42). A segunda tem a ver com o sentido que, neste contexto, dou à palavra “subir”. Um convite a nos reerguermos das nossas limitações, de aspirarmos a ser sempre mais, até se alcançar, a “Jerusalém celeste” (cfr. Apocalipse 21, 2-4), garantida pela Ressurreição de Cristo. Nesta perspetiva a subida é sempre um dinamismo ascético. Esta dinâmica obriga à prática das três maiores virtudes: a fé, a esperança e a caridade.
A elas se refere, com poucas palavras, mas grande profundidade, o Papa. Fixemos uma afirmação a propósito de cada uma delas. A fé que nos impele “a acolher a Verdade e a tornar-nos suas testemunhas diante de Deus e de todos os nossos irmãos e irmãs”[2] . É nesta convicção que situa o sentido do jejum como “experiência duma pobreza assumida, quem jejua faz-se pobre com os pobres e ‘acumula’ a riqueza do amor recebido e partilhado”[3]. A esperança como a possibilidade que a Quaresma nos dá de “dizer palavras de incentivo, que reconfortam, consolam, fortalecem, estimulam, em vez de palavras que humilham, angustiam, irritam, desprezam” (encíclica Fratelli Tutti, 223)[4]. Grande desafio a mudarmos a narrativa que neste tempo quaresmal se centra, exageradamente, nas misérias humanas, sobretudo com mensagens tenebrosas que não apontam “para ter esperança, para voltar a dirigir o nosso olhar para a paciência de Deus, que continua a cuidar da sua Criação, não obstante nós a maltratarmos com frequência (cf. encíclica Laudato si’, 32-33.43-44).”[5]. Finalmente, a caridade que se alegra “ao ver o outro crescer; e de igual modo sofre quando o encontra na angústia: sozinho, doente, sem abrigo, desprezado, necessitado…A caridade é o impulso do coração que nos faz sair de nós mesmos, gerando o vínculo da partilha e da comunhão.”[6].
Esta parece-me ser a síntese – que não dispensa a leitura integral da mensagem – para uma vivência quaresmal coerente e mais um passo que podemos dar para o nosso crescimento interior, sem desanimar, pois “cada etapa da vida é um tempo para crer, esperar e amar. Que este apelo a viver a Quaresma como percurso de conversão, oração e partilha dos nossos bens, nos ajude a repassar, na nossa memória comunitária e pessoal, a fé que vem de Cristo vivo, a esperança animada pelo sopro do Espírito e o amor cuja fonte inexaurível é o coração misericordioso do Pai.”[7].
[1] Cf. Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2021, «Vamos subir a Jerusalém…» (Mt20,18). Quaresma: tempo para renovar a fé, esperança e caridade”.
[2] Ibidem, 1.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem, 2.
[5] Ibidem.
[6] Ibidem, 3.
[7] Ibidem.
Eugénio Fonseca é presidente da Confederação Portuguesa do Voluntariado