[instalam-se vazios
há rubros grãos no verso ―
sê faminto, sê louco!]
Joaquim Félix

“Neste longo e frio inverno eclesial, vejo a Igreja como uma romã, partida, mas ainda suspensa, com tantas galerias de sombra, cavidades de ausências e podres, mas que, no verso dessas ruínas (do corpo que somos), possui ainda uns quantos grãos de mel, de vermelho em sangue escondido, sementes de testemunhas… Foto © Joaquim Félix
1. «Vacilas por ternura Deus omnipotente
da pedra fonte da água viva rompeste
a um povo sedento
retira da nossa dureza a compunção das lágrimas
longo pranto por nossos pecados concede
pois vendo-nos assim te compadeces
e obtemos remissão» (Oração Coleta, in O dom das lágrimas, 25).
[Conceder breve silêncio, de suspensão a qualquer palavra outra,
até que o mais inadvertido suspeite que é ele mais do que natural.]
Hoje, começo a homilia assim, com lágrimas e silêncio,
rezando uma oração da antiga liturgia cristã,
que, juntamente com outras, reapareceu num pequeno livro,
intitulado O dom das lágrimas, da coleção «Gato Maltês»,
publicado pela Assírio & Alvim, em 2002.
2. Por estes dias, alguns de nós ouviram um padre recém-ordenado
a dizer, também numa homilia nesta comunidade,
que, enquanto ouvia os pungentes relatos das vítimas,
lidos por ocasião da apresentação do relatório da Comissão Independente
para o Estudo dos Abusos Sexuais sobre Crianças
na Igreja Católica em Portugal,
só lhe apetecia chorar, chorar… chorar.
Sim, trata-se do padre Pedro Sousa,
que, ainda no domingo passado, aqui nos falava do GPS,
para nos reconduzir no caminho, quando se cometem erros.
Na verdade, esse foi sempre o trabalho de Jesus,
de quem, hoje, continuamos a ouvir o mesmo ‘caminho da boa notícia’.
3. É verdade, Jesus subiu à montanha para que,
neste seu magistério, do qual aprendemos desde há três domingos,
as suas palavras nos levem a ver mais longe,
a ver em volta, sobremaneira desde o testemunho de Deus,
concretizado na sua pessoa, entre nós, fazendo-se ‘próximo’.
Porque, se o nosso olhar se colar às notícias más ― e são tantas! ―,
poderemos adoecer com dantescas imagens ‘apocalíticas’.
Quem poderá ficar indiferente à revelação de que
pelo menos 4.815 crianças foram abusadas na Igreja Católica,
em Portugal, entre 1950 e 2022?
E quantas pessoas não haverá mais, adultas também, nomeadamente mulheres?
Por estes dias, há demasiados escombros,
imagens de caos e de sofrimento, de outros terramotos e guerras,
a entrar pelos nossos olhos adentro.
São ainda ‘pontas de icebergues’, como nos dizem.
De facto, na semana que nos são dadas a ver imagens inéditas do Titanic,
parece-nos que outros navios de passageiros, ditos inafundáveis,
correm perigo, se ignorarem os ‘sinais dos tempos’.
4. O que nos faz reler quanto escreve Tomáš Halík,
em A tarde do Cristianismo:
«A Igreja, como comunidade de fé,
é também uma comunidade de experiência partilhada do caminho
pelo vale escuro das sombras.
Não apenas as nossas histórias pessoais de fé,
mas também a história da Igreja tem as suas primaveras
e os seus longos e frios invernos» (p.217).
Tanta é a sombra, tanta! ― diremos nós.
É um Black Valley, como aquele que se atravessa na Irlanda,
e até lhe pode servir de cartaz de Igreja católica no momento.
Quem diz da Irlanda, poderá dizê-lo de tantas outras por todo o lado.
Neste longo e frio inverno eclesial,
vejo a Igreja como uma romã, partida, mas ainda suspensa,
com tantas galerias de sombra, cavidades de ausências e podres,
mas que, no verso dessas ruínas (do corpo que somos),
possui ainda uns quantos grãos de mel,
de vermelho em sangue escondido, sementes de testemunhas…
Foi a imagem de Igreja que Deus me concedeu ver esta manhã!
5. Esta ou outras imagens, que, em cada um de nós,
sustentam a esperança no meio das contrariedades,
não pode levar-nos ao ‘cegar das cegonhas’ (de cabeça mergulhada na areia),
nem a deixar de fazer ‘perguntas de fundo’.
Porque estão tantas comunidades e movimentos apostólicos,
que nasceram um pouco antes e no pós-Vaticano II, sob investigação?
Como discernir algumas das perversões teológicas,
― que talvez só a psicologia profunda poderá explicar ―,
tivessem dado origem a abusos inqualificáveis
atribuídos a Jean Vanier e a Marko Rupnik, entre outros?
Como foi possível que tantos abusos fossem cometidos,
a partir da estratégia do encobrimento,
faltando à solidariedade e ao reparo para com as vítimas?
6. As escolas católicas e nomeadamente os seminários
estão a ser objeto de muitas e pertinentes críticas.
Lendo os mais recentes artigos da imprensa escrita,
como aliás sucedeu em debates televisivos desta semana,
encontrámos uma enorme quantidade de observações,
de questionamentos e ainda de sugestões de mudança.
Trabalhando ao longo destes quase vinte anos, aqui no Conciliar,
sabemos por experiência que se trata de uma missão deveras exigente.
Atentos, aquilo que nos move é sobretudo formar pessoas íntegras, sãs.
Como sabeis, há meses promovemos um congresso internacional,
sobre a problemática dos seminários católicos,
refletindo sobre muitos dos temas que têm surgido na imprensa.
Por sinal, vários dos articulistas estiveram envolvidos no congresso.
Muito do que eles apontam tem sido posto em prática;
porém, e por isso nos sentimos por vezes ‘insuficientes’,
o problema é mais fundo do que a questão de ‘modelos’ formativos;
a grande questão, sem nos eximirmos à crítica, é eclesiológica:
é a forma de ser Igreja que está em causa e necessita urgentemente de mudanças.
7. Este ‘porém’ leva-nos ao «Porém» de Jesus, no evangelho.
Ouvimos as antíteses finais de uma série que começou no domingo passado.
Que nos dirá Jesus, também em relação ao muito que ouvimos e lemos?
Na forma de reconduzir a Lei à sua fonte e ao seu fruto,
Jesus estará a dizer-nos para não afastarmos o nosso rosto de ninguém,
nem mesmo quando nos batem numa das faces.
A quem nos esbofeteia, diremos:
«Continuo a ser dom para ti! Toma, também, o que mais te posso oferecer!
Todo o meu rosto é para ti! Para que vejas que sou mais do que um estalo!».
Que poderá acontecer na estrada,
naquela milha que é feita em dobro em relação ao exigido?
Jesus acredita que, nesse caminho longo, se inaugura a possibilidade da mudança.
No tribunal, ao tempo de Jesus, não poderia ser reclamado o manto (cf. Ex.22,25-26).
Porém, Jesus, tal como como Lhe veio a suceder,
sabe que o despojamento até à nudez, mesmo que dela se desvie o olhar,
continuará a ser a fonte de um questionamento radical…
Amar os inimigos e orar por queles que nos perseguem?
Mas não será isto uma forma de perpetuar o mal,
de renunciar à denúncia profética e à luta pelo bem?
Para Jesus será o modo de concretizar o fim da não-violência ativa:
para que todos participem da bondade de Deus em fraternidade,
a cura dos opressores será, em última instância, o fruto maduro da Lei.
8. Ouvindo o que nos foi dito, mesmo na última semana, Jesus interroga-nos:
«Que fazeis de extraordinário?» (Mt 5,47).
Havemos de, como Deus, ser sol e chuva para todos, sem preconceitos nem aceções?
Renunciaremos à barbárie, inclusive à recompensa de lei, a favor dos irmãos?
No meio de tantas coisas hediondas,
que fazemos de extraordinário? ― pergunta Jesus.
Para terminar, cito a última frase do card. José Tolentino Mendonça,
na introdução que fez ao livro O dom das lágrimas:
«Cioran disse, um dia, que as lágrimas são aquilo que permite a alguém ser santo,
depois de ter sido homem» (p. 14).
Rezemos outra oração para que sejamos perfeitos e santos como Deus (Mt 5,48 e Lev 19,2):
«Ó Deus que preferes a compaixão
por aqueles que esperam em ti
e não a ira
concede-nos chorar longamente males que fizemos
de modo que mereçamos
tua consolação como uma graça» (XIII Outra oração, p. 49).
Não restem dúvidas: Deus não deseja o ódio entre irmãos.
Porque, como bem recorda Etty Hillesum,
«cada chispa de ódio que nós acrescentamos ao mundo
torna-o mais inóspito do que aquilo que já é».
Joaquim Félix é padre católico, vice-reitor do Seminário Conciliar de Braga e professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa; autor de vários livros, entre os quais Triságia. Este texto corresponde à homilia da missa de domingo passado, VII domingo do tempo comum, ano A.