
Um aspeto da cidade de Kiev, Ucrânia. Foto © Ana Vasquez.
Quando lá estive, em 2018, perguntaram-me: “Que tal Kyiv? Visitável?”. Na altura, nunca cheguei a responder a essa pergunta, que na verdade era um comentário numa rede social. Agora, talvez seja tarde… Lembro-me de pensar que não tinha uma resposta para essa pergunta – e isso era tão estranho quanto esclarecedor para mim.
Sentia que a Ucrânia, sim, era visitável. Mas Kyiv era e é uma cidade estranha, com coisas muito bonitas, outras muito feias e, pelo meio, lugares (complexos e quarteirões inteiros) por onde se passava como que sorrateiramente… lugares a que parecia que ninguém queria voltar. Tudo era grande, alto e muita coisa, de edifícios a mobiliário urbano, tinha assim uma espécie de camada de tristeza. Prédios inteiros, antigos, que eram como peças amontoadas no atelier do Sr. Alberto, o carpinteiro, à espera que ele lhes pegasse para lhes dar uma outra vida, sabem? Da janela da casa em que fiquei, sonhava morar num daqueles prédios, como sonhava com a secretária antiga com que poderia ficar depois de passar pelas mãos do Sr. Alberto.
Nessa mesma zona, os edifícios e a vida das pessoas pareciam organizar-se para dentro. Do lado da rua, os prédios eram muito juntos. Por trás, e até onde eu conseguia ver, estavam dispostos em quadrados, cada um com uma praça, um parque infantil e um pequeno anexo com ferramentas de jardinagem, onde vi também um vizinho a arranjar o carro. Tanto o jardim como o parque também precisavam de uma mãozinha, mas não estavam propriamente ao abandono. Dava a impressão de que faziam questão de conservar o melhor de um passado que, ao mesmo tempo, queriam apagar da memória.
As avenidas principais eram majestosas e brilhantes, mas depois à volta havia muita coisa em construção (prédios altos como os que agora vemos ruir na TV), de uma forma um bocado preocupante. Caótica, sem qualquer tipo de planeamento aparente (e eu sempre a pensar nas mãos do Sr. Alberto…).
Uma certeza ficou: o mais visitável de Kyiv são as pessoas. Fáceis, simpáticas, hospitaleiras, pacientes. Sobretudo as mais velhas, tinham cara de livros de história e esforçavam-se por se dar a ler, mesmo sem falar uma palavra de inglês. Essa parte, a mais bonita de Kyiv, ao que sei, continua viva. Em Lviv, até ver, a mesma coisa. Não é muito frequente em mim esta sensação e esta certeza, mas, assim que seja possível, tanto a Ucrânia como Kyiv são sítios aonde quero muito voltar.
Conheci uma cidade, num país e com um povo cheio de esperança, mesmo que em estado de alerta. A guerra na Ucrânia começou, para nós, há pouco mais de três meses. Para eles, nunca acabou. Deixámo-nos dormir à sombra dos vistos gold, dos prédios de milhões e dos iates nas marinas. Disfarçamos com uma espécie de desesperada e caótica caridade, em que pouco importa qual o impacto que terá o que fazemos, desde que façamos. E assim ganhamos uns pontos de karma para poder continuar a sesta e o faz-de-conta-que-até-estamos-a-recuperar-dignidade. O importante é que nada mude, mesmo quando já tudo mudou.
Ana Vasquez trabalha em Comunicação e Marketing. Contacto: anapontovasquez@gmail.com