
Papa Francisco presidiu à eucaristia no Estádio Velódrome e pediu que todos sejam acolhidos. Foto © Vatican Media
O Papa criticou, na sua intervenção no final dos Encontros do Mediterrâneo (Rencontres Méditerranéennes), quem promove a rejeição dos migrantes e refugiados, na Europa, lamentando que se fechem “vários portos do Mediterrâneo” a pessoas que correm perigo de vida. “Ressoaram duas palavras, alimentando os temores das pessoas: invasão e emergência. Mas, quem arrisca a vida no mar não invade, procura acolhimento”, disse, no Palácio do Farol, na sessão conclusiva da iniciativa promovida pela Arquidiocese de Marselha.
“Há um grito de dor que ressoa mais do que qualquer outro e está a transformar o ‘mare nostrum’ em ‘mare mortuum’, a mudar o Mediterrâneo de berço da civilização em túmulo da dignidade. É o grito sufocado dos irmãos e irmãs migrantes”, denunciou Francisco, perante responsáveis religiosos e políticos, incluindo o Presidente francês, Emmanuel Macron, com quem o Papa se encontrou depois, mais tarde, em privado.
A sessão contou com a presença de bispos católicos de França e de outras dioceses do Mediterrâneo, uma representação de jovens do Norte de África, dos Balcãs, da Europa Latina, do Mar Negro e do Médio Oriente, além de associações humanitárias. “Nacionalismos antiquados e beligerantes querem fazer cair o sonho da comunidade das nações! Mas lembremo-nos de que, com as armas, se faz a guerra, não a paz; e com a ganância de poder volta-se ao passado, não se constrói o futuro”, afirmou o Papa.
Francisco apelou a uma “responsabilidade europeia”, que seja capaz de enfrentar as dificuldades objetivas colocadas pelas questões migratórias. “O ‘mare nostrum’ clama por justiça, com as suas margens que dum lado transudam opulência, consumismo e desperdício, enquanto do outro há pobreza e precariedade”, sustentou.
Francisco começou por falar de Marselha como “o sorriso do Mediterrâneo” e a “capital da integração”. Junto ao Mediterrâneo, “berço de civilizações”, o Papa destacou a importância deste espaço de encontro “entre as religiões abraâmicas, entre o pensamento grego, latino e árabe, entre a ciência, a filosofia e o direito, e entre muitas outras realidades”.
A intervenção aludiu à emergência climática e à necessidade de que o Mediterrâneo seja um “laboratório de paz”, que dê voz ao “grito muitas vezes silencioso dos últimos”. “Onde há precariedade, há criminalidade: onde há pobreza material, educativa, laboral, cultural e religiosa, encontram terreno propício as máfias e os tráficos ilícitos”, sublinhou. Falando no impacto da criminalidade, Francisco referiu que “é preciso um sobressalto de consciência para dizer ‘não’ à ilegalidade e ‘sim’ à solidariedade”.
O Papa evocou os “idosos abandonados” e criticou a legalização do aborto, recordando os bebés “recusados em nome dum falso direito ao progresso, que é, ao contrário, um retrocesso nas necessidades do indivíduo”.
O discurso lamentou, ainda, as situações de “injustiça e perseguição”, com referência particular aos “cristãos, muitas vezes obrigados a abandonar as suas terras ou a viver nelas sem ver reconhecidos os seus direitos, sem gozar de plena cidadania”. “Quem olha com compaixão para além da própria margem a fim de ouvir os gritos de dor que se levantam do Norte de África e do Médio Oriente?”, perguntou, citando intervenções dos papas Paulo VI e Pio XII.
Francisco apelou à formação dos jovens, capazes de “abrir portas inesperadas de diálogo”. “Aqui os jovens são fascinados, não pela sedução do poder, mas pelo sonho de construir o futuro. Que as universidades mediterrânicas sejam laboratórios de sonhos e estaleiros de construção de futuro”, desejou.
O Papa foi recebido pelo Presidente da República Francesa, pelo arcebispo de Marselha e pelo presidente da Câmara da cidade.
Os presentes ouviram o testemunho da jovem italiana Mariaserena, voluntária da Comunidade do Papa João XXIII, que esteve em Lesbos e vive agora em Atenas. “O Mediterrâneo precisa de viver a fraternidade e de a espalhar por todo o lado, porque, gostaria de sublinhar, o Mediterrâneo já não é apenas um cemitério, é um verdadeiro cenário de crimes contra a humanidade”, denunciou.
Depois, e já no estádio Velódrome, perante milhares de pessoas, Francisco presidiu à eucaristia e alertou para as doenças do coração, na sociedade europeia, que considerou marcada pela “tristeza” e a indiferença perante o sofrimento. “Um coração frio e insensível arrasta a vida de forma mecânica, sem paixão, sem impulsos, sem anseios. E, de tudo isto, é possível adoecer na nossa sociedade europeia: o cinismo, o desencanto, a resignação, a incerteza, e, num sentido geral, a tristeza”, disse, na homilia da Missa, perante mais de 50 mil pessoas.
Francisco chegou ao local em papamóvel, após ter sido saudado por dezenas de milhares de pessoas que o acompanharam, no exterior do estádio. “As nossas cidades metropolitanas e muitos países europeus como a França, onde convivem diferentes culturas e religiões, são um grande desafio contra as exasperações do individualismo, contra os egoísmos e os fechamentos que produzem solidões e sofrimentos”, observou.
A homilia convidou os católicos a viver a sua fé com “saltos de alegria”, que transformam o interior de cada pessoa. “É o contrário dum coração insensível, frio, acomodado numa vida tranquila, que se blinda na indiferença e se torna impermeável, que endurece, insensível a tudo e a todos, inclusive ao trágico descarte da vida humana, que hoje é rejeitada em tantas pessoas que emigram, bem como em muitos bebés não nascidos e em muitos idosos abandonados”, acrescentou.
A missa, em francês, começou com uma saudação do Papa a Marselha e à França, deixando depois uma referência à história do país, “rica de santidade, de cultura, de artistas e de pensadores”. “Também hoje a nossa vida, a vida da Igreja, a França e a Europa precisam disto: da graça dum salto de alegria, dum novo salto de fé, de caridade e de esperança. Precisamos de reencontrar paixão e entusiasmo”, apelou.
Francisco convidou todos a “redescobrir o gosto do compromisso pela fraternidade, ousar ainda o risco do amor nas famílias e para com os mais frágeis”, levando a mensagem do Evangelho a “sociedades marcadas pelo secularismo mundano e por uma certa indiferença religiosa”.
A intervenção partiu da passagem do Evangelho segundo São Lucas que relata a visita da Virgem Maria à sua prima Isabel, quando as duas estavam grávidas – a mesma passagem que inspirou o tema da JMJ 2023, ‘Maria levantou-se e partiu apressadamente’. “Quem crê, quem reza, quem acolhe o Senhor salta de alegria no Espírito, sente que algo se move por dentro, dança de alegria”, afirmou o Papa, que concluiu com uma oração a Notre Dame de la Garde, pela França e pela Europa, e uma citação do poeta francês Paul Claudel (1868-1955), sublinhada com uma salva de palmas da multidão.
Antes do final da eucaristia, o arcebispo de Marselha, cardeal Jean-Marc Aveline, deixou uma mensagem ao Papa, agradecendo-lhe pela sua visita, iniciada esta sexta-feira, por ocasião dos Encontros do Mediterrâneo, que decorreram na cidade do Sul de França.
Francisco respondeu, agradecendo às autoridades políticas e a quantos prepararam esta visita, antes de desafiar os católicos a ser “sinais de Deus perante a atual epidemia da indiferença”.
O Papa saudou, em particular, os sobreviventes do atentado de Nice, a 14 de julho de 2016, as vítimas de todos os atentados terroristas e da guerra, com referência ao “martirizado povo ucraniano”.
Esta foi a 44ª viagem internacional do pontificado, tendo Francisco visitado 61 países, incluindo Portugal por duas vezes; a 25 de novembro de 2014, o Papa esteve na cidade francesa de Estrasburgo, para discursar perante o Parlamento Europeu e o Conselho da Europa.