
Muro entre o México e os EUA: “Os desafios de encontro com o diferente desinstalam-nos sempre e podem assustar-nos de tal modo, que nos levem a erigir muros em vez de sermos pontes.” Foto © Amnistia Internacional.
As leituras da liturgia de hoje [25 setembro 2022, XXVI domingo do Tempo Comum na liturgia católica, Dia Mundial do Migrante e do Refugiado] incitam-nos a fazermos um exame de consciência sobre as nossas atitudes. Amós, profeta ríspido, cru, do século VIII a.C., tinha a responsabilidade de desmascarar a brutalidade das desigualdades sociais e a indiferença em relação àqueles que viviam sem posses nem recursos, o que levaria Martin Luther King a citá-lo no seu famoso discurso I Have a Dream. Amós adverte-nos, finalmente, na leitura de hoje, para a armadilha das falsas seguranças, nas quais nós muitas vezes pensamos descansar.
O Evangelho coloca-nos diante de um contraste flagrante entre a situação de opulência do homem rico sem nome (e que, como tal, pode ser cada um de nós) e a indigência do homem pobre chamado Lázaro (aquele cuja riqueza é ter nome). Paulo, pelo seu lado, diz a Timóteo que a vida é tempo de luta. Todas estas mensagens são como que pequeninas luzes que apontam para a realidade de grande fragilidade do migrante e do refugiado, cujo Dia Mundial se celebra hoje e cuja mensagem o Papa Francisco intitulou Construir o futuro com os migrantes e os refugiados, uma vez que a sua presença entre nós «constitui um grande desafio, mas também uma oportunidade de crescimento cultural e espiritual para todos», escreve o Papa na referida mensagem.
Os desafios de encontro com o diferente desinstalam-nos sempre e podem assustar-nos de tal modo, que nos levem a erigir muros em vez de sermos pontes; os desafios de encontro com o diferente de nós obrigam-nos a reconcentrarmo-nos nos nossos valores e a podarmos as nossas atitudes, limpando-as de ciscos e ramos secos para que deem lugar à força do Espírito que faz brotar novas paisagens de assombro e de diálogo. Sim, porque o Espírito sopra onde, como e quando quer, mas nós podemos – mesmo dentro da Igreja, dentro das nossas comunidades – incorrer na grave tentação de controlar os seus passos ou mesmo tentar impedir o seu «sopro» renovador e surpreendente.
Quem, eu? Quem, ele/ela?

Ainda um destes dias celebrámos a Festa de São Mateus. Para a homilia desse dia, recorri ao quadro A Vocação de Mateus, de Caravaggio (1571-1610), que se encontra na igreja de São Luís dos Franceses, em Roma, e que certamente conheceis. Uma beleza barroca, num contraste entre luz e sombra que dá volume à pintura e nos transporta para a cena. Naquela pintura, Jesus aponta para Mateus e este aponta para si mesmo, como que a dizer: «quem, eu?»; mas há uma outra versão, que é a de que aquele personagem aponta para o jovem que está absorto a contar o dinheiro, perguntando: «quem, ele?»
Composição ambígua que nos deixa espaço para reflexão. Cada um de nós poderá colocar-se no papel daquele personagem, quando se é interpelado – chamado – por Jesus: «quem, eu, pecador e frágil como sou?» ou, mais lapidar e acusatório: «quem, ele (ou ela)?» Temos uma capacidade excessiva para julgar o outro: «quem, ele? Quem, ela?» julgamos e afastamo-nos daquele que é diferente sempre que nos colocamos no centro e permitimos que seja a nossa subjetividade a determinar a direção dos nossos passos. Teremos de «derrubar os muros do eu e superar as barreiras do egoísmo», dizia o Papa Francisco na Laudato Si’, indo ao encontro do outro, desarmados e com mãos abertas para dar e receber e o ouvido do coração bem afinado, para que a escuta seja genuína. Sem excluir ninguém, já que «o plano divino é essencialmente inclusivo e coloca, no centro, os habitantes das periferias existenciais», diz, ainda, o Papa.
A evangelização começou, com frequência, a partir da imposição de uma imagem centralizadora de Cristo e da Igreja, procurando-se, então, adaptar as realidades culturais a tal sólida imagem. Mas uma pergunta impõe-se: poderemos ensinar algo se não estivermos previamente dispostos a aprender o que o outro e diferente de nós tem para nos transmitir? A resposta parece óbvia, mas não deixa de ser um enorme repto. O «ide e ensinai» pode condicionar-nos de tal forma que, na nossa sede de ensinarmos, ignoremos aquilo que teremos de aprender com o outro. Ou nos acolhemos mutuamente e procuramos valorizar os aspetos positivos no outro… em suma, ou nos predispomos a aprender e abrimos o coração ou ficamos tolhidos na nossa solidão, numa «camisa-de-forças» cada vez mais apertada no fictício conforto dentro das paredes por nós erigidas.
Exige-se um diálogo com todos, a começar por aqueles que estão mais distantes e esforçarmo-nos por discernir a atuação do Espírito nas comunidades cristãs, católicas e não católicas, nas religiões não cristãs e, mesmo, nas pessoas ditas não religiosas, nos agnósticos ou ateus. Reconhecer, sem medos, sem invejas nem fundamentalismos, o bem que se espalha através de muitos que, por vezes, estão fora do nosso círculo e buscam um gesto de afeto e de hospitalidade, tais como o pobre – de que é exemplo Lázaro –, o migrante, o refugiado, o sedento de vida. Esforcemo-nos por praticar «a justiça e a piedade, a fé e a caridade, a perseverança e a mansidão», como diz Paulo a Timóteo, pois isso é sinal da nossa conversão e de reconstrução da nossa esperança, uma vez que «o futuro começa hoje e a partir de cada um de nós» (Papa Francisco).
Adelino Ascenso é padre católico e superior geral da Sociedade Missionária da Boa Nova; texto da homilia feita neste domingo, 25, na Capela do Rato, em Lisboa.