
” (…)este modelo tão antigo de caridade e de ação-intervenção social mantém plena atualidade”. Gravura: O Bom Samaritano, Georg Pencz – Bibioteca Nacional Digital, Brasil /Wikimedia Commons
1. O Papa Francisco entendeu por bem dedicar o segundo capítulo da encíclica Fratelli Tutti (FT) à parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 25-37). E a maneira como aborda o tema permite-nos falar de “re-samaritanização”, por dois motivos: primeiro, porque vem recordar que este modelo tão antigo de caridade e de ação-intervenção social mantém plena atualidade; e, em segundo lugar, porque interpreta a parábola de maneira diferente da mais comum e tradicional.
Pode afirmar-se que a FT considera três patamares da ação social, em sentido amplo, bem como da caridade: o básico, o intermédio e o estatal (nºs. 77-78; cf. 165, 169, 181 e 186). No básico, incluem-se as relações interpessoais de família, amizade, vizinhança, companheirismo…; no intermédio, as instituições particulares, os movimentos sociais e as empresas privadas; e, no estatal, os diferentes, órgãos, organismos e empresas do Estado.
Como bem se compreende, a tradição cristã mais generalizada concentrou-se especialmente no primeiro patamar; o segundo concretizou-se nas inúmeras instituições sociais criadas pela Igreja e por outras entidades, ao longo dos séculos, e também nas empresas privadas ou do sector cooperativo-social comprometidas na responsabilidade social; o terceiro concretizou-se na assunção de responsabilidades sociais públicas, por inúmeros cristãos e não cristãos, em órgãos de soberania, bem como em organismos e empresas do Estado.
Ao longo da história, surgiram diferendos entre os três patamares de ação: o primeiro foi considerado “assistencialista” por defensores dos outros dois porque, supostamente, “alimenta” as situações de pobreza; o segundo foi criticado por, alegadamente, menosprezar o primeiro e limitar o seu âmbito de ação às capacidades de resposta; o terceiro foi contestado por misturar a ação social com a vida partidária e não garantir cobertura de todos os problemas.
2. Francisco, sem entrar em pormenores de classificação, deixa bem claro que os três patamares se completam e são indispensáveis: o primeiro não poderá ser descurado, sob pena de a pessoa humana, enquanto tal, ficar excluída; o segundo complementa o primeiro, na medida em que traz respostas de que ele necessita; o terceiro é também claramente indispensável não só porque vem completar, tendencialmente, o quadro de respostas mas também porque implica o compromisso de toda a comunidade política nos objetivos sociais, consagrando os direitos e responsabilidades correspondentes (cf. as citações supra; para o caso português, são bastante elucidativos os artigos 2º., 9º., 12º., 13º., 53º. e 58º. a 79º. da Constituição).
O capítulo V da Fratelli Tutti, especialmente nos nºs. 176-197, concentra-se no terceiro patamar da ação social, elege como orientação fundamental a caridade social e política, exercida pelos políticos no sentido corrente e pelos cidadãos em geral na sua dimensão política. No nº. 183, identifica uma linha de rumo estruturante, transcrevendo o nº. 207 do Compêndio da Doutrina Social da Igreja: “O amor social é uma ‘força capaz de suscitar novas vias para enfrentar os problemas do mundo de hoje e renovar profundamente, a partir do interior, as estruturas, organizações sociais, ordenamentos jurídicos”. A ação básica, a intermédia e a estatal, acima referidas, acham-se bem sintetizadas no nº. 182: “(…) não há um verdadeiro povo sem a referência ao rosto de cada pessoa. Povo e pessoa são termos correlativos. (…) A boa política procura caminhos de construção de comunidade nos diferentes níveis da vida social, a fim de reequilibrar e reordenar a globalização para evitar os seus efeitos desagregadores.”
Acácio Catarino é consultor social