“É certo que nem tudo o que deriva da natureza pode ser necessariamente atribuído à vontade divina, pelo menos atendendo à maneira como o cristianismo a interpreta. É exemplo disso a deficiência física ou psíquica com que alguém nasce e que é impeditiva da sua realização plena. Mas a homossexualidade não é de todo assimilável a uma deficiência, em contraposição, portanto, à vontade divina. Não só não há motivos sólidos para ser assim interpretada, como temos motivos para crer exatamente no contrário. De facto, desta orientação não deriva necessariamente a impossibilidade de realização humana, nem dela decorre nenhum prejuízo para os outros ou para a comunidade.”
“Mas a homossexualidade não é de todo assimilável a uma deficiência, em contraposição, portanto, à vontade divina.”
(Jorge Paulo, Lei natural ou liberdade responsável?, 7 MARGENS)

Alice Caldeira Cabral, autora do texto, com o filho, em 2007, pouco antes da morte de Dido. Foto: Direitos reservados.
Caríssimo Jorge Paulo
Li com atenção o seu artigo publicado dia 14 de Janeiro no 7 MARGENS em especial a perspetiva de que “a aceitação da legitimidade moral das relações homoafetivas não é nenhum protesto contra as relações heterossexuais ou contra o casamento tradicional.” Trata-se, como diz, da aceitação da diversidade humana vista como “natural”, ou seja, como parte integrante da natureza humana na sua complexidade.
Tradicionalmente tudo o que saía das regras sociais era considerado um mal a combater e perigoso, se se procurava afirmar – as ideias “novas”, a todos os níveis, foram sempre perseguidas. Ou se tratava de “pecado” ou de “doença” – ambos precisavam de ser corrigidos para que os visados voltassem a entrar na “norma” da regra socialmente aceite. Por isso sublinho o início do seu artigo por aquela afirmação introdutória – de que não se trata de um “protesto” contra…
A introdução da questão da complexidade é algo que também considero muito importante.
Já a questão da “vontade de Deus” e do modo como aborda o tema da deficiência, suscitou-me grandes dúvidas. Ou digamos, mais que dúvidas: um grande incómodo. Porque é que diz que “a deficiência física ou psíquica é impeditiva da realização plena” da pessoa? Causa-me perplexidade que a deficiência seja vista como contraposição à vontade divina!
No Evangelho de S. João é-nos relatada a cena do cego de nascença. Jesus responde aos discípulos que lhe perguntam quem pecou para que nascesse cego, identificando a cegueira – a deficiência – como algo de mau proveniente de uma culpa – um castigo. A resposta de Jesus desfaz completamente essa visão: “Nem ele pecou nem os seus pais; mas foi assim para se manifestarem nele as obras de Deus.” (Jo 9, 1-3)
A deficiência não é castigo, é uma manifestação da diversidade humana com características muito diferentes em cada pessoa. É desafiante para os seus próximos e para a sociedade: o desafio do cuidado e da atenção às necessidades uns dos outros, não deixando de reconhecer o valor de cada um para a construção do todo. Desinstala-nos das maneiras de fazer habituais “para o cidadão médio” (se isso existisse) exigindo criatividade no repensar dos modos de organização da sociedade para que todos tenham lugar.
Pessoalmente não tenho nenhuma deficiência física ou psíquica (na sua definição rigorosa), apesar das minhas inúmeras limitações ao nível físico e psíquico que limitam a minha “realização plena” em relação aos valores e crenças fundos em mim…
Há tantas pessoas com deficiências graves, congénitas ou adquiridas, que fizeram a humanidade progredir e lutaram, apesar das suas limitações, por seguir os seus grandes movimentos interiores, marcando as comunidades onde viviam, as geográficas, as científicas, as religiosas, sendo delas feita uma avaliação de uma vida plena de significado para a própria pessoa e para a sociedade, a nível micro ou macro.
Tenho pessoalmente o exemplo do meu filho com uma deficiência intelectual grave e extensa, falecido aos 36 anos, há já 15 anos. Considero que ele foi uma pessoa plenamente realizada. Deixou uma marca na família e aqui, na comunidade geográfica, notável. Não falando, era mestre em comunicação pacificadora… Sabia promover o que há de bom nas pessoas, tanto ao nível artístico como simplesmente humano. Mesmo em ambientes hostis, sabia ignorar e desarmar a hostilidade. Como? Olhando para o seu interlocutor até receber uma resposta qualquer dele – nesse momento, manifestava a sua alegria, deixando o interlocutor com a sensação de ser competente e capaz de interagir com aquela pessoa que assustava pela sua diferença, pela baba, etc… e dava-se um encontro interpessoal, para além das limitações. O afeto positivo e a alegria de parte a parte surgia… Transformava os ambientes.
Quando chegar ao termo da minha vida, gostaria muito de ser recordada como ele, como pessoa que acredita no valor e nas competências do outro, seja ele quem for. Saber revelar ao outro o seu valor e transmitir-lhe paz e aceitação do que ele é, seria o que eu gostaria de ter aprendido com o mestre, de quem tive o privilégio de ser mãe. Esses são os valores que norteiam a minha vida e que permitiriam a minha realização plena… que longe estou dela, apesar de não ter nenhuma deficiência!
A deficiência não limita a “vontade de Deus”. Faz parte da diversidade humana e incide sobre algumas capacidades que podem ser limitativas de uma plena participação na vida social ou não, dependendo do modo como a sociedade se organiza para lhes facilitar ou dificultar a vida.
É a sociedade que tem de se organizar para acolher os seus dons e as suas capacidades permitindo a sua realização plena – essa sim, a vontade de Deus para cada um dos seres humanos que Ele criou, cada um único nas suas capacidades e incapacidades e características pessoais.
Évora, Janeiro de 2023
Alice Caldeira Cabral, mãe do Wadid Sidarus, pessoa com deficiência intelectual grave (falecido aos 36 anos, há 15 anos), da Muna, estudante de medicina e da Nura, docente de neurociências em Inglaterra; é vice-presidente do Serviço Pastoral a Pessoas com Deficiência e suas famílias da Arquidiocese de Évora.