
” Francisco pede que se recordem ainda os desempregados, os sem-abrigo, os sem-terra, as crianças exploradas e todas as situações que exigem uma “cultura de misericórdia” que combata a indiferença e a desconfiança entre seres humanos”. Foto: Trabalho infantil em Bangladesh. Rana Roy / Wikimedia Commons
A expansão do capitalismo nas nossas sociedades modernas tem potenciado algo que era impensável há uns séculos atrás, ou seja, a democratização da acumulação de riqueza e a mobilidade social, conforme já defendido por Max Weber. Temos de facto assistido, e principalmente a partir do final da II Guerra Mundial, a uma ascensão da classe média que, aliás, é associada a determinados padrões de consumo e de educação, algo nunca visto antes. Mas essa ascensão assenta igualmente na meritocracia, onde cada um, pelo seu próprio esforço e competência, compete com os outros pelo aumento da sua riqueza e bem-estar.
Também se verifica que o avanço desta nossa sociedade capitalista tem fomentado fortemente o consumismo. O problema é que, devido ao forte incremento dos mercados e ao estímulo excessivo ao consumo, além do surgimento de patologias que geram círculos viciosos entre a sensação de vazio e a necessidade de consumir algo, de se colocar em causa valores básicos da convivência social como a solidariedade, a fraternidade e a ética, coloca-se também em risco a própria sustentabilidade do nosso planeta.
Não se está aqui de maneira nenhuma a defender qualquer espécie de estoicismo em que se atinge a ataraxia ou empatia face às adversidades da vida, o conformismo perante a pobreza ou até mesmo o despreendimento total das riquezas. Uma coisa é ter necessidade de consumir para satisfazer as nossas necessidades mais elementares e básicas, outra é deixar-se conduzir pelo consumismo desenfreado, motor que sustenta o capitalismo selvagem em que estamos mergulhados. Querem-nos ensinar a ser ricos e prósperos, quando o que necessitamos realmente é reaprender a ser pobres.
Não vemos nas sagradas escrituras e especialmente nos evangelhos, que Jesus se tenha preocupado muito com as riquezas. Atendendo ao facto que a esmagadora maioria das populações e entre as quais se incluía o auditório do Mestre, serem pobres e escravos, causa mesmo alguma estranheza que Ele tivesse ainda assim um duro discurso contra a posse de riquezas materiais.
Conhecendo certamente o coração humano, Jesus prefere que se peça o pão de cada dia, ao invés de o acumular, que se partilhe com outros em vez de se reter. A economia de Jesus é assim puramente minimalista: além de atender às necessidades básicas do ser humano, tanto física, emocional e espiritual, ainda assim opera no ser humano esse milagre da partilha, da dádiva incondicional de uns para com os outros.
Será mesmo um imperativo reaprendermos a ser pobres, porque na pobreza, no despojamento de nós mesmos, já despidos do nosso ego, egoísmo, dureza de coração, nos libertamos, primeiramente para o próprio Deus, depois para o nosso próximo e finalmente para a Sua Criação.
Interessante que o apóstolo Paulo, a respeito da coleta que pedia para ser levantada em favor da Igreja de Jerusalém, tenha referido que os coríntios conheciam a graça de Jesus, que, sendo rico, se tinha tornado pobre por todos, para que todos fossem enriquecidos pela sua pobreza. Aqui, naquilo que parece ser um paradoxo, Paulo instiga a outros a largarem, a exemplo de Jesus, as suas riquezas, a reaprenderem a ser pobres a fim de que que alcancem essa riqueza que somente Deus pode dar, a qual só se alcança com total desprendimento e entrega pelos mais frágeis, pobres e necessitados.
Recordemos as palavras do Papa Francisco aquando da instituição, desde 2017, do Dia Mundial dos Pobres, no 33.º domingo do Tempo Comum, convidando cada cristão a “refletir como a pobreza está no âmago do Evangelho”, a ir ao encontro dos que padecem de fome e de sede para “renovar o rosto da Igreja”, para que a Igreja seja “testemunha da misericórdia” dando respostas concretas em campos como as migrações, as doenças, as prisões, o analfabetismo e a ignorância religiosa. Francisco pede que se recordem ainda os desempregados, os sem-abrigo, os sem-terra, as crianças exploradas e todas as situações que exigem uma “cultura de misericórdia” que combata a indiferença e a desconfiança entre seres humanos. Teremos então entendido, tal como Jesus, que o pão, o bem-estar, a verdadeira felicidade que todos tanto ansiamos no íntimo do nosso ser, só será alguma vez alcançada quando reaprendermos a sermos pobres.
Vítor Rafael é investigador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo, da Universidade Lusófona.