Pré-publicação

“Reconstruir a catedral”, prefácio de José Tolentino Mendonça ao “Livro da Deslocação”

| 25 Jun 2022

Na próxima terça-feira 28, às 21h30, na Capela da Imaculada (Rua de S. Domingos, 94B) em Braga, o Livro da Deslocação, obra poética de Joaquim Félix de Carvalho, será apresentado por Manuel Pinto, professor universitário e membro da equipa editorial do 7MARGENS. O autor é vice-reitor do Seminário Conciliar de Braga, professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa e autor de vários livros, entre os quais Triságia.
A sessão, de entrada livre, terá atuações musicais de André Bandeira e Olavo Barros. A capa reproduz uma foto de Alcino Gonçalves, a partir de uma obra de Rui Chafes numa exposição em Matera, sul de Itália. O livro tem prefácio do cardeal José Tolentino Mendonça, que se publica a seguir.

 

Imagem da capa do livro: Rui Chafes, L’oggi così lento e lo ieri così breve (2011), ferro. Exposição Entrate per la porta stretta, 2011, Matera (Itália). Foto © Alcino Gonçalves.

Para nos adentrarmos na admirável obra poética com que Joaquim Félix de Carvalho se estreia, meditemos na prática da esgrima. Esta pode ser descrita como a ativação de uma cadeia de deslocações que ocorrem num corpo em ordem ao encontro com outro corpo. O primeiro de todos os movimentos é a «Saudação». Os dois esgrimidores colocam-se frente a frente, dispondo os pés de forma a que os calcanhares se juntem e erguem então a lâmina, saudando o oponente. Só depois se sucedem os diversos lances em que os corpos dos lutadores se deslocam, ora protegendo, ora projetando. São eles, por exemplo, a «Guarda», o «Marchar e Romper», a «Estocada», a «Flecha» ou o «Destaque». Essas deslocações parecem minimais (pois implicam sobretudo gradações na flexão dos joelhos; sincronização de cotovelo e pulso; alongamentos e retrações; saltos e quedas…), mas delas depende que um corpo saia do combate ileso ou em ferida, vitorioso ou em irremediável perda.

De deslocações minimais se faz também este livro e a ideia de poesia que o autor persegue. Podemos dizer que ele opera na linguagem isso mesmo: gradações, sincronizações, alongamentos ou retrações, movimentos que se desenham na discrição. Ele diz: «Não apagues o livro. Não multipliques a luz/ das lâmpadas» (iii, lâmpada da leitura). Estamos obviamente longe de forçamentos ou de imposições ideológicas de sentido. A paisagem do mundo não se altera: descobre-se, sim, fluvial («A arquitetura é água», i, água silêncio); desloca-se, que é coisa diversa. No seu modo persiste aquela elegância que os escritores espirituais chamam de indiferença e desapego. E isso que é a sua grafia, vem também reclamado pela genealogia estética que Joaquim Félix de Carvalho nomeia. No texto de epígrafe, retirado de Entre o céu e a terra (2012), de Rui Chafes, são citados Pier Paolo Pasolini e Robert Bresson. O primeiro diz: «O sentido poético é o que nos permite agir sobre o mundo mediante uma deslocação, por vezes mínima de sentido ou de ponto de vista». E para o segundo «não é necessário nem possível procurar a poesia, ela penetra pelas juntas».

O que é que isto tem a ver com a esgrima? Os primeiros tratados sobre a esgrima (o manuscrito «Flos Duellatorum», de Fiore de’ Liberi, o «De dignoscendis hominibus», escrito pelo teólogo Pietro Monti ou o «Tratado do Engano» de Giacomo Di Grassi) descrevem-na não como um confronto agonístico ou um desporto violento, baseado na submissão, mas como uma aventura de conhecimento do que somos em solidão e companhia, do que interpretamos e trocamos uns com os outros. A esgrima é, segundo eles, uma pedagogia da vigilância e do encontro, um despertar dos sentidos em vista não tanto do combate quanto da hospitalidade, um exercício de escuta do outro, uma prática espiritual.

O facto de se praticar com máscara, aproxima, por exemplo, a esgrima do teatro antigo. No teatro a máscara funcionava como uma espécie de operador de deslocação: através dela o ator assumia-se como agente de uma identidade alterada, transformando a própria presença em re-presentação. Também na esgrima podemos dizer que a máscara protege e expõe. É porque possuem a máscara que os atletas estão equipados e se apresentam devidamente protegidos. Mas, ao mesmo tempo, é a colocação da máscara que marca a possibilidade do duelo, do avanço que os expõe aos golpes, a esse jogo que, vimos já, só na aparência é uma encenação da hostilidade. De facto, a esgrima e o poema coincidem na ordem: «Basta de sangue!» (viii, anfisbena, p.?). Não será essa a sua direção. Na esgrima e no poema, descobre-se uma circularidade incessante de sujeitos («Lento o meu corpo descerra no teu», vii, lento). Há um trânsito de sentidos, um questionamento («Habito o questionamento/da sua carne tão confiante», iv, verbo da floresta), um «pathos artesanal» (i, lâminas cerdeiras), uma deslocação a esclarecer. E, como afirma, Joaquim Félix de Carvalho, «Oh! Esclarecer. Sapiência» (viii, anfisbena). Esclarecer é, efetivamente, o programa desta refinadíssima ars poetica. Vejamos, porém, como é colocado em prática e com que fim.

Tomemos, a esse propósito, o poema intitulado ii, atmosfera orgã, pois possui uma exemplaridade, talvez útil ao leitor para aventurar-se ao conjunto da obra:

Da arca os abetos exalam essências
e as cerejeiras reabrem-se
pela vazia das estrelas liquidâmbares

Golpeai-vos naquele touché
ao reconhecimento do ataque manual
esgrima de ameixeira e ébano

O gládio do mundo-música atinge-vos
nas possibilidades tímbricas
das sonoridades consistentes

Oh! acendei os sentidos na atmosfera órgã
Oh! Ruah de pulmões. Immixtio. E sorvei o vento
Dos registos divididos

o alabastro quebrado
a beleza até ao carpo

A composição vem intitulada «atmosfera órgã». A intitulação abre-nos ao elemento cosmológico e também a um certo entendimento do cosmos, pois a atmosfera é dita «órgã», um neologismo que a descreve como instrumento musical («órgã» seria, neste caso, o feminino de órgão). No bíblico Livro dos Salmos essa compreensão é, afinal, muito comum. Pensemos no Salmo 148: «Louvem o Senhor sol e lua, louvem-no todas as estrelas cintilantes./Louvem-no os mais altos céus e as águas acima do firmamento…/Louvem o Senhor relâmpagos e granizo, neve e neblina,/ vendavais que cumprem o que ele determina». O cosmos é uma caixa acústica do louvor. Ou, como se anuncia mais adiante no poema, o «mundo-música» atinge-nos, atinge antes de tudo o leitor revelando-lhe «possibilidades tímbricas» e «sonoridades» onde antes víamos apenas o mundo. Mas para que a mudança aconteça temos que nos deixar ferir: «Golpeai-vos naquele touché/ao reconhecimento». Somos assim introduzidos na importância da esgrima que, podemos dizer, é aqui um outro modo de pensar a poesia. Felizes os que se deixam ferir. A ferida é a condição de uma perceção transformada. É ela que nos conduz por um itinerário mistagógico em três etapas. Primeiro: «acendei os sentidos». Trata-se praticamente da citação do verso «accende lumen sensibus» que integra o antiquíssimo hino «Veni Creator Spiritus», cantado nas celebrações do Pentecostes. É um convite a abrir amplamente os sentidos físicos e espirituais. Depois: «immixtio», um termo típico da ritualidade eucarística. A dado momento, antes da comunhão, o sacerdote parte a hóstia e deposita no cálice uma minúscula parte: é a «immixtio», literalmente, o misturar com outra coisa. A terceira etapa está contida no verbo «sorver». Que coisa sorvemos? O vento que é «Ruah», espírito. Mas espírito de quem? E a resposta da poética de Joaquim Félix de Carvalho é inequivocamente cristológica: «o alabastro quebrado/a beleza até ao carpo». Duas referências claras à paixão e à ressurreição: a cena da unção de Jesus por uma mulher anónima, que rompe sobre a sua cabeça um alabastro de perfume (Mc 14:3-9); e o desafio que o ressuscitado faz na aparição aos discípulos que tinham medo de O reconhecer: «vejam as minhas mãos» (Lc 24:39). Se pensarmos que o lugar mais plausível das mãos para pregar os pregos foi o carpo, percebemos o significado do verso conclusivo.

É um volume de mística este? Um ensaio sobre o combate espiritual? É. Mas isso não faz menos dele um magnífico poemário. O subtítulo da obra apresenta com naturalidade essa ambição: «da ruína farei uma betel». O hebraico bet-El significa casa de Deus. Ora, fazer da ruína uma casa de Deus não é tarefa exclusiva dos místicos e dos teólogos. É, sim, a tarefa que os artistas devem assumir. Isso mesmo afirma Rui Chafes numa das epígrafes: «Para mim, a questão que se continua a colocar é saber como vamos reconstruir a catedral». Joaquim Félix de Carvalho não poderia estar mais de acordo.

 

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