
“Ele sentia que ‘a intolerância, a violência, a bestialidade entravam-nos pela casa a qualquer momento do dia, particularmente à hora do jantar'”. Foto © Centenário Eugénio de Andrade.
Para os antigos a realidade verdadeira (ou o que nós pensamos ser verdadeira) não ostentava nenhum particular privilégio em relação à realidade inventada (ou o que nós pensamos ser inventada). O facto de uma coisa ter acontecido não dava nenhuma vantagem a respeito de uma que não tinha acontecido, mas que deveria ter acontecido, segundo a lógica do bom senso e da oportunidade.
Tudo isto para dizer que para os gregos e os romanos, fundamentalmente, a verdade tem a ver com a utilidade, a finalidade e, em última instância, com a beleza. O que é mais útil ou mais apto para um determinado objetivo, ou simplesmente mais belo, mais elegante, mais divertido, mais trágico, mais cómico, mais justo, é mais verdadeiro.
Por isso é que as biografias antigas dos heróis, dos poetas, dos filósofos, dos reis ou imperadores e dos atletas eram uma espécie de categoria interpretativa do real. Se uma coisa não fizesse muito sentido, mudava-se a coisa, de um modo ou de outro. Se uma morte não correspondesse à vida gloriosa que o herói viveu (ou à ideia que se tinha dessa vida), adaptava-se, corrigindo com a palavra o erro que a natureza ou o fado cometeu.
Tudo isto para vos contar uma história que não saberia como caracterizar, se de realidade verdadeira ou inventada, mas de todas as maneiras real. Éramos duas testemunhas, confirmados pela absoluta certeza que conferem os afetos. O amor é o melhor viaduto da verdade (“se acreditais em mim, acreditai no que vos digo”). E nós amávamos o Eugénio de Andrade.
Provavelmente são muito poucos, ou quase ninguém, os que sabem desta história. Nunca a vi escrita, nem mencionada nas inúmeras notícias ou biografias do Eugénio, nem muito menos nas crónicas sobre o que aconteceu em Tiananmen, há muitos anos. Tão pouco dá conta disso o seu tradutor em chinês, Yao Jingming, que conheceu o poeta em 1988. É disso que pretendo dar testemunho, ad perpetuam rei memoriam, no dia em que o Eugénio de Andrade celebraria cem anos de vida.
Estávamos em 2002 e o Eugénio de Andrade favorecera-me, imerecidamente, com um matinal prefácio ao livro O Vento da Noite (Assírio e Alvim, 2002). E já aí ele sentia que “a intolerância, a violência, a bestialidade entravam-nos pela casa a qualquer momento do dia, particularmente à hora do jantar, pelos canais de televisão, metendo-nos no prato bocados de corpos explodidos pelas minas, e que, insensíveis já, íamos comendo juntamente com o bife e as batatas fritas”.
Foi ao relembrar esses dias de terror, instaurados com os atentados de 11 de setembro de 2001, que o Eugénio de Andrade nos contou o seu encontro com um poeta chinês dissidente que escapara ao massacre da Praça de Tiananmen no dia 4 de Junho de 1989.
Encontraram-se por acaso (mas seria o acaso?) em Santiago de Compostela, onde se deslocaram ambos para um daqueles eventos literários com direito a prémio e tudo e que tanto faziam exasperar o Eugénio. O frio parecia varrer a terra, vindo de mais longe ou de mais fundo. O próprio coração da vida dilacerava-se com o vento gelado, “como finas agulhas de aço”. Aqueles eram os tempos da “descida ao inferno” de que o Eugénio escrevera no prefácio: “um vazio total onde assistíamos à apoteose do nada”.
Encontraram-se por acaso, dizia, no hall do hotel dos Reis Católicos, mesmo no centro da cidade do apóstolo. E o poeta chinês (hei-de recuperar o seu nome, prometo!), de estatura chinesa, olhar submisso, muito chinês, em atitude quase natural de veneração da velhice, delicadíssimo, ajoelha-se a seus pés e beija-lhe as mãos.
“Naturalmente, ajudei-o a levantar-se e abracei-o”, disse-nos o Eugénio, ainda sem conhecer o verdadeiro motivo de tão grande devoção.
Foi ali que o jovem chinês lhe revelou, com o coração aflito, que naqueles dias vermelhos e negros dos protestos de Tiananmen, entre as palavras de ordem secretas que os jovens estudantes dissidentes passavam de mão em mão, corriam os versos de Eugénio de Andrade! Os versos de Eugénio de Andrade funcionavam como password da revolução sonhada por aqueles jovens estudantes, na longínqua China.
Para o Eugénio, “foi como se amanhecesse!”
Roma, 19 de Janeiro de 2023
Mário Rui de Oliveira é padre, autor de O Livro da Consolação, e trabalha em Roma.