Redescobrindo a dimensão carismática da igreja

| 28 Ago 2022

pormenor de El Greco, Pentecostes (c. 1596-1600), Museu do Prado, Madrid

“O caminho da Igreja, enquanto comunidade do Povo de Deus, deverá sempre ser aquele que é proposto e guiado pelo Espírito Santo.” Ilustração: Pormenor de Pentecostes, El Greco (c. 1596-1600), Museu do Prado, Madrid.

 

 

É um facto inegável que desde os primórdios do cristianismo sempre houve uma tensão entre instituição e carisma. As primeiras comunidades cristãs fundadas por Paulo, especialmente as igrejas de Corinto, eram essencialmente carismáticas. Uma das extraordinárias analogias que Paulo usa para se referir à Igreja e que melhor expõe a sua eclesiologia é a do corpo humano (1 Coríntios 12:31). Aqui, todos os que fazem parte da Igreja do Senhor são equiparados a membros de um corpo cuja cabeça é o próprio Cristo (v. 27), estando assim ligados intimamente uns aos outros (v. 14-20) e mandatados indiscriminadamente para o serviço mútuo em amor e para edificação da Igreja. Para tal, o Espírito Santo concede graciosamente à Igreja dons (ou carismas) (v. 28). O que esta analogia demonstra é a importância do exercício dos dons para o bem coletivo da Igreja, em detrimento das posições individualistas de alguns membros no seio da comunidade de Corinto.

Ao longo dos tempos, sempre houve a tentação e persistência de alguns considerarem os seus dons numa perspetiva meramente individualista, sectária e egoísta. Experiências deste tipo ocorrem quando, por exemplo, espontânea, extática e/ou abusadamente alguém alega que o seu carisma tem maior primazia ou importância do que os dos outros, algo que tem levado irremediavelmente ao surgimento de problemas no meio das comunidades e da Igreja em geral. Foi assim com o surgimento do montanismo nos finais do segundo século da nossa era. Este movimento profético exigia total confiança nas revelações espontâneas do Espírito, e os seus profetas, descrevendo-se a si próprios como possuídos pelo próprio Espírito, através de sonhos, visões e instruções, pretendiam purificar e preparar as suas comunidades para a iminente vinda de Jesus. A reação negativa da Igreja institucional e especialmente do clero perante este fenómeno de histeria em massa redundaria na progressiva desvalorização e controlo do livre exercício dos dons espirituais na Igreja em geral, algo que acabaria também por empobrecê-la.

Sabe-se que ao longo da história da Igreja houve igualmente tentativas de restaurar o livre exercício dos carismas espirituais tal como ocorrera nos primórdios do cristianismo. Mas será tão somente no século XX, e através de três grandes eventos – o início do pentecostalismo em 1907 nos Estados Unidos, o grande II Concílio Ecuménico do Vaticano (1962-65) e o surgimento do movimento de Renovação Carismática Católica em 1967 na Universidade de Duquesne na Pensilvânia – que se dará início a essa redescoberta da experiência do Espírito e que redundará na tentativa de se impor uma eclesiologia verdadeiramente pneumatológica orientada, portanto, para o exercício alargado e gracioso dos dons dispensados pelo Espírito Santo à Igreja.

Apesar de ainda persistirem na Igreja algumas tensões entre instituição e carisma, entre autoridade e livre exercício dos dons do Espírito, não faltam os esforços para se chegar a um real compromisso, principalmente a partir do Vaticano II. Na constituição dogmática sobre a Igreja (Lumen Gentium), promulgada pelo Papa Paulo VI em 30 de outubro de 1964 e mais focada na realidade teológica do que na institucional/hierárquica, os padres conciliares não deixaram de sublinhar que é precisamente o Espírito Santo, enviado no Pentecostes, que continuamente santifica a Igreja. Ele age como defensor dos fiéis e testemunha o seu estatuto de filhos adotivos. É igualmente o Espírito Santo que renova, instrui e guia a Igreja na verdade, equipando-a com “dons hierárquicos e carismáticos” (lg, 7). Quanto aos carismas e dons espirituais que são distribuídos por toda a Igreja, o documento refere ainda “o juízo acerca da sua autenticidade e reto uso pertence àqueles que presidem na Igreja e aos quais compete de modo especial não extinguir o Espírito, mas julgar tudo e conservar o que é bom.” (LG 12).

Já nas igrejas protestantes e evangélicas, a realidade é bem mais complexa devido a uma imensa pluralidade de teologias e eclesiologias. É correto afirmar que a Reforma Protestante levantou bem alto a bandeira do sacerdócio universal do crente. De acordo com algumas passagens do Novo Testamento, como a carta do apóstolo Paulo aos Efésios (2:18-21), todos os cristãos através de Jesus têm acesso direto a Deus Pai através do Espírito. Devido ao facto de muitos dos reformadores protestantes enfatizarem a primazia da verdade objetiva sob a experiência subjetiva, muitas das chamadas igrejas históricas protestantes entendem ainda que parte dos dons do Espírito deixaram de existir ainda nos primórdios da Igreja primitiva. Mas serão precisamente as novas igrejas independentes pentecostais que surgem a partir de meados do século XX que irão defender a não cessação dos carismas e imprimir uma maior liberdade ao exercício dos mesmos no decorrer da experiência da redescoberta do Espírito.

A dimensão carismática da Igreja tem sido agora bastante valorizada pelo Papa Francisco. Na sua recente carta apostólica sob forma de motu proprio Ad charisma tuendum, de 23 de julho de 2022, sobre a organização da Opus Dei, o Papa a fim de salvaguardar o carisma, decreta que sejam observadas algumas normas.

O artigo 4.º refere que “respeitando plenamente a natureza do carisma específico descrito na constituição apostólica acima mencionada, pretende-se fortalecer a convicção de que, para a proteção do dom particular do espírito, é necessária uma forma de governo baseada mais no carisma do que na autoridade hierárquica. Portanto, o prelado não deverá ser honrado, nem terá a possibilidade de ser honrado, com a ordem episcopal“. Não negando a importância dos dons de liderança e ensino – que devem ser sempre vistos numa perspetiva de serviço e não de autoridade, o caminho da Igreja, enquanto comunidade do Povo de Deus, deverá sempre ser aquele que é proposto e guiado pelo Espírito Santo, onde cada membro tem um papel importante e essencial no exercício dos seus carismas graciosamente concedidos para a edificação da Igreja do Senhor.

 

Vítor Rafael é investigador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo, da Universidade Lusófona.

 

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