
“Senhor, dá-me dessa água, para que não mais tenha sede, e não venha aqui tirá-la”. Figura: Annibale Carracci, Cristo e a Samaritana (Museu de Belas Artes, Viena)
Vivemos em tempos que nos convocam ao equilíbrio. Estamos rodeados de desequilíbrio por todo o lado, tanto nos discursos como nas atitudes, por parte de muitos protagonistas na vida pública. Basta pensarmos na arena política (populismos de esquerda e direita), no desporto ou mesmo no campo das artes, mas também na vida privada, se considerarmos a violência doméstica e tantos outros crimes sociais. As sociedades necessitam de equilíbrio emocional, relacional, económico-financeiro e também espiritual.
O texto neotestamentário do Evangelho de João 4:3-30 empresta-nos uma base interessante de reflexão sobre a temática. Diz a Escritura que era necessário a Jesus passar por Samaria na sua viagem para a Galileia. Mas seria necessário porquê? O texto não o esclarece. Alguns dirão que era para comprar mantimentos para a viagem. Talvez, mas para quem era capaz de multiplicar pães e peixes não parece convincente; além disso sabemos que os judeus evitavam encontros com os samaritanos por razões históricas, culturais e religiosas.
Creio que a verdadeira razão é porque o Mestre se queria encontrar com a mulher de Sicar, pois uma alma vale o mundo inteiro, comprovando assim que para Jesus as relações humanas eram fundamentais, independentemente das barreiras religiosas (uma vez que judeus e samaritanos não se falavam) e culturais (já que um homem não podia falar com uma mulher estranha a sós, mesmo em espaço público).
Mas o facto é que para Jesus não havia barreiras e ele não discutiu tradições religiosas nem questões culturais, limitando-se a ir directo ao que interessava: “Jesus respondeu, e disse-lhe: Se tu conheceras o dom de Deus, e quem é o que te diz: Dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva” (v10). Esta atitude de Jesus Cristo questiona-nos sobre o sentido de os cristãos perderem tanto tempo com coisas secundárias desviando-se do foco.
A verdade é que a mulher respondeu à essência da mensagem de Jesus, embora com um olhar material e não espiritual: “Disse-lhe a mulher: Senhor, tu não tens com que a tirar, e o poço é fundo; onde, pois, tens a água viva? És tu maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu o poço, bebendo ele próprio dele, e os seus filhos, e o seu gado?” (v11, 12). Ela queria aquela água, não estava era a ver como, tal como muitos hoje anseiam por paz e sentido para a sua vida, mas não estão a ver como.
Jesus continuou sempre centrado na essência da sua mensagem: “Jesus respondeu, e disse-lhe: Qualquer que beber desta água tornará a ter sede; Mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que salte para a vida eterna” (v13,14).
E a mulher respondeu a essa mensagem, revelando a sua necessidade mais profunda: “Disse-lhe a mulher: Senhor, dá-me dessa água, para que não mais tenha sede, e não venha aqui tirá-la” (v15). De facto, há fontes que não saciam a sede, apenas disfarçam: “E estava ali a fonte de Jacó” (v6). A tradição e a religiosidade não saciam a sede profunda da alma humana.
Note-se que só depois de a mulher aceitar a água viva (a Palavra) é que Jesus a confrontou com os erros da sua vida: mandou-a chamar o marido, sabendo da sua estória de vida (vs16-18). Mas a mulher ainda se perdeu em questões teológicas e religiosas: “Disse-lhe a mulher: Senhor, vejo que és profeta. Nossos pais adoraram neste monte, e vós dizeis que é em Jerusalém o lugar onde se deve adorar” (v19,20). Mas é curioso como Jesus respondeu acima das disputas teológicas: “Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me que a hora vem, em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai” (v21).
E assim vemos como a prioridade evangelística da fé cristã se organiza deste modo: primeiro vem a mensagem de Salvação (a “água viva”), depois é que vem a ética cristã (a questão dos sucessivos maridos), e finalmente a resposta às dúvidas religiosas (o local correcto de adoração).
Então por que razão a Igreja de Cristo perde tanto tempo a fazer exactamente o contrário, ou seja, a colocar a ética e a discussão doutrinária antes da mensagem de Salvação?
A mulher de Sicar tinha um problema grave com os seus relacionamentos. Há muitas razões que explicam porque falham as relações humanas. Desde logo a tendência para estabelecer expectativas muito elevadas no parceiro/parceira/amigo/a, mas também as interferências externas, as dificuldades de aceitação da diferença, que normalmente revelam insegurança. Entre outras acrescente-se ainda a rigidez (incapacidade de negociação a partir das necessidades pessoais de cada um), o egoísmo (pensar apenas e sempre em si próprio e não no outro) e os traumas do passado ainda por resolver.
Mas não podemos esquecer as causas profundas das relações falhadas, como a sede de aceitação de si mesmo, a sede de reconhecimento, a sede de valorização pessoal e sobretudo a sede de se sentir amado/a pela outra parte.
Mas a tudo isto o amor de Jesus (aquela fonte de água viva) responde plenamente. Se eu sei que sou amado incondicionalmente por Deus, aceito-me a mim mesmo, sinto-me reconhecido e valorizado. Quem quer um balde de água quando tem uma fonte à disposição?
José Brissos-Lino é director do mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona, coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo e director da revista teológica Ad Aeternum.