Religião “versus” Evangelho?

| 4 Mai 2022

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“Se precisamos de beijos e abraços para intensificar o amor, de modo semelhante precisamos de rituais que intensifiquem a fé.” Missa na Sé de Lisboa, 2022. Foto © Patriarcado de Lisboa.

 

Em 28 de Março, o 7MARGENS noticiava que Augusto dos Santos Silva declarara que “a religião, como outros aspectos da cultura, é parte do espaço público”. Não se considera católico, mas acredita em Deus no sentido de Fernando Pessoa: “Deus é existirmos e isso não é ser tudo.” E afirma: “A dimensão religiosa é absolutamente essencial.”

Numa das frases do dia, lia-se uma posição do teólogo José M. Castillo: “O mais grave na Igreja é que a religião está mais presente que o Evangelho… é mais decisiva que o Evangelho”.

Comecei por dar mais razão a Santos Silva: tenho sido adepto de que a dimensão religiosa está demasiado ausente na Igreja. Não é verdade que os actos de culto se reduziram muito a costumes sociais ou aos deveres de quem se diz bem-educado? Que temos de fingir dar importância a um credo sob vários aspectos mirabolante (o de Niceia-Constantinopla), com a pretensão de descrever Deus e sem nos fazer sentir a dignidade, responsabilidade e prazer de ser cristão?

No dia 15 de Abril, o 7MARGENS abria com uma frase de Álvaro Siza: “A questão sobre Deus é o não saber explicar.”

O Credo podia ao menos admitir que “não sabe explicar”… podia ao menos referir a experiência de Deus afirmada na Bíblia Hebraica: os meus pensamentos estão infinitamente acima dos vossos. Na linha do artigo citado, diria que a questão sobre Deus tem que ser um “diálogo” permanente – e não um dogma constante. Aliás, o “catecismo”, creio que de acordo com novas posições da cúpula da Igreja, deveria ser olhado não como o cadastro de ser católico mas como um “relatório” sempre actualizado do que é ser cristão.

Para a “salvação da sociedade”, a Igreja não pode ser acusada de sal estragado. Felizmente, a maioria dos fiéis poderá dispor de um excelente armazém interior de “flor de sal”.

Continuo com Fernando Pessoa: a religião de quem não reflecte sobre “isso não ser tudo” e não se quer inquietar com o mistério ou quebra-cabeças da existência – anda perto do ritualismo mágico; e dependente de vários tipos de videntes ou preguiçosamente descansado com as palavras de senhores doutores ou de qualquer autor “sagrado”.

Quanto à importância da dimensão religiosa, diversas abordagens actuais confirmam a imprescindível importância das religiões na fundação e eficaz funcionamento das características da vida social.

Seguindo John Bowker no seu livro Why Religions Matter (Cambridgge University Press, 2015, onde se encontra abundante bibliografia), podemos sintetizar algumas dessas influências positivas (a que não faltam o reverso da medalha). Sobretudo nas páginas 9-19:

As religiões formam o contexto da formação dos mais altos valores – no domínio das artes, ciências “humanas” e “exactas”.

Enriquecem a linguagem e exactidão conceitual. Exploram a imaginação – que nos diferencia dos mais evoluídos animais: “a habilidade da mente humana para imaginar cenários e ‘viajar’ com eles no espaço-tempo; e de estabelecer conexões entre esses cenários e os cenários de cada pessoa”. Perscrutando assim o cosmos e a natureza humana.

Integram o passado, nos grupos humanos e em cada pessoa. Fortalecem a importância da transmissão de conhecimentos, técnicas e valores, entre as várias gerações. Ao mesmo tempo, protegem o grupo, que se revela tanto pacífico como violento. Por isso, a religião codificou as guerras de justas ou condenáveis. Prevalece, contudo, o valor do altruísmo juntamente com o de amor e paz.

Dão relevo à protecção da família, das crianças e dos mais necessitados. Criam serviços de apoio, integrando-os no superior objectivo da sobrevivência da espécie humana. Daí também o relevo dado ao sexo e vida sexual, cujo papel de união e procriação devem ser protegidos.

Criando espaços e tempos favoráveis à experiência religiosa, aprofundaram as dimensões do “sagrado e profano”. Desenvolveram técnicas de reflexão e meditação, inter-acção do mundo exterior e interior e o alcance do conceito de “símbolo”. Nesta base se organizaram rituais adequados a profunda experiência religiosa.

É evidente que esta síntese não considera os inúmeros desvios e corrupções ao longo da história. Como diz um provérbio latino: “Não há coisa pior do que a corrupção do que é muito bom” (Corruptio optimi pessima).

Não creio que Castillo possa ser considerado como oponente de Pessoa. Mas por que será que lamenta que a religião seja “mais decisiva do que o evangelho”? Sem o profundo espírito religioso, como será possível entender o evangelho?

Reli os cinco artigos de J. M. Castillo publicados no Nuevo Diccionario de Teología (J. J. Tamayo, Dir., Ed. Trotta, 2005: Autoridad y poder, Bautismo y confirmación, Eucaristía, Reino de Dios, Sacramentos). As linhas que seguem são apenas a minha colheita na sua vinha. Entre aspas vão algumas citações literais:

Para Castillo, a religião cristã não é meramente a consciência e reflexão sobre a insatisfação intrínseca à existência. Para já, esta insatisfação é que nos faz avançar continuamente, com a “satisfação” e alegria de sermos anunciadores do que nos pode fazer solidamente felizes e promover uma sociedade “feliz”. Mas somos um “anúncio vivo”: só agindo é que anunciamos.

Assim, frequentemente refere a dimensão social, que implica uma fé activa na sociedade, com a responsabilidade de pôr a render os talentos de cada qual para o bem de todos. Por isso é preciso avivar o sentido dos ritos como “conjunto de acções que exprimem e valorizam a relação religiosa”. Pois estes reflectem a dimensão corporal dessa relação e formam um espaço-tempo adequado à ligação com o sagrado.

O rito não é, portanto, um acto individual, mas de um grupo em união. A unidade reflectida na comunhão de sentimentos, no prazer de participar e partilhar… estimulam a vontade para a transformação pessoal, sem a qual o rito religioso de nada vale. Mas necessitamos desse espaço-tempo especial para saborear e melhorar a vida real. Não foi o que aconteceu na Via Sacra desta Páscoa em Roma?

É fundamental a experiência religiosa que em si é inefável. E a fé assenta na experiência da liberdade, esperança, amor. Se precisamos de beijos e abraços para intensificar o amor, de modo semelhante precisamos de rituais que intensifiquem a fé.

Mas não nos podemos sentir constrangidos nos rituais. De certo modo, estes assemelham-se às festas, pelo aspecto lúdico: só há regras q.b. para um jogo que nos atrai.

Porém, desde os primeiros séculos do cristianismo, Deus passou a ser concebido mais pelo conceito de poder do que de bondade. Provavelmente devido ao fulgor do Pantocrator (“todo-poderoso”) helénico, à centralização do poder na Igreja e à errada interpretação de autoridade em Jesus Cristo: as acções de Jesus são vistas como manifestações de poder e não de solidariedade, mais de divindade do que da humanidade com que se dedicou ao bem-estar de todos e particularmente dos mais oprimidos e sofredores.

A própria Eucaristia deixou de ser sentida sobretudo como “um facto comunitário” e uma “refeição partilhada”. Para Jesus, como bom judeu, reunir-se à mesa era ser solidário com os comensais, incluindo os desprezados pela elite social e religiosa. Recorre ao simbolismo da refeição: fonte e conforto de vida e partilha da bebida e comida que desencadeia amizade e amor.

A Eucaristia é sobretudo “um símbolo comunitário”, uma experiência profunda de união e amor. Através dela, mantemos Jesus Cristo vivo, como “revolucionário” que se preocupa pela autêntica “ordem social”; rompemos os esquemas sociais degradantes e opressores e proclamamos que Jesus, contra o que parecia, não fracassou.

Procurando uma conclusão: além da abertura a Deus (de Fernando Pessoa), é preciso questionar “como nos podemos relacionar com Deus”. A ideia de Deus, por si, não traz felicidade. Mas o “reino de Deus” é uma notícia positiva, estimulante de alegria, que entusiasma qualquer pessoa, qualquer cultura, qualquer estilo de vida. É uma mensagem simples e que interessa a todos. E que exige “empenho e luta para assegurar, quanto possível, a plenitude da vida”.

 

Manuel Alte da Veiga é professor aposentado do ensino universitário.

 

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