Religiões, vírus e responsabilidade de todos

| 14 Mar 20

Passou pouco mais de um mês sobre uma tertúlia em que se falou de media e religião, comunidade e fé, no arranque de um novo ano civil. Ouvíamos já os primeiros relatos de um novo vírus e as implicações da sua propagação na longínqua China. As preocupações andavam ainda perdidas entre as consequências de um livro que colocava “Papa” contra Papa, o papel da religião na moldura cultural e social ou as novas formas de comunicar e de estar.

Na assistência havia sobretudo gente religiosa, mas também ateus e agnósticos, empenhados, todos, em fazer pontes e estreitar caminhos de convivência onde as circunstâncias aparentam dificuldades de encontro.

Pelo meio ouviam-se, de diferentes sensibilidades, rasgos de lucidez humana, daquela ética que subjaz à existência e releva o essencial sobre o (pre)conceito, a essência sobre a(s) forma(s). “O amor”, disse alguém, “não tem fronteiras” e “de Deus nunca ninguém ouviu dizer de que religião é, ou que tem uma religião”. Reclamava-se aquele lugar sem lugar, aquela utopia comum em construção, transformada em ideia para se fazer ética do cuidado e respeito pelo próximo.

Recuperando a philia aristotélica, o Papa Francisco rediz este “amor” como sendo também cívico e político, a capacidade de o humano ser em relação, valorizando-se coletivamente para se transcender individualmente e na corresponsabilidade.

Ninguém, naquela tertúlia, imaginaria que tais reflexões fizessem tanto sentido poucas semanas depois.

Testemunhamos mais um apelo da história, uma contingência da existência, um suspiro da Terra. Vivemos momentos que enquadrávamos em ficções mais ou menos legitimadas pela previsibilidade científica.

Reagiremos a este momento, expectante, porque de ansiedade apocalítica e de incerteza social se alimenta também este tempo. E é na medida da resposta que diremos quem somos e como evoluímos desde o último suspiro, da última contingência, do último apelo.

O sentimento religioso também se sintoniza com as aparentes inevitabilidades. Em contexto judaico-cristão e islâmico desenha-se escatologicamente. Ensombrado pelo fantasma de Dante, o caminho passa pelo mitológico caos, que remete para a matéria primordial, como se a ordem das coisas implicasse a coexistência com uma desordem originária e simultaneamente restauradora.

A decisão de as igrejas, mesquitas e outros templos encerrarem ao culto é um sinal racionalmente extraordinário. Fora do contexto, será difícil entender o significado tremendo que esta decisão tem na vida dos crentes. A oração comunitária – que no catolicismo tem a dimensão sacramental da eucaristia, uma ação de graças com a presença mística de Deus –, é central na vivência de fé. Retirá-la do quotidiano dos crentes é, por isso, de uma extrema audácia e coragem, ainda mais no caso cristão e católico, atravessando praticamente todo o tempo quaresmal até à Páscoa.

É, simultaneamente, uma simbólica epifania. Se, em contexto de fé, se crê num Deus que se fez homem, é na salvaguarda da vida humana, em particular e no todo, que Ele se revela, em “amor” político e cívico, na opção corresponsável pelo bem-comum.

Condicionados por uma experiência exacerbadamente emocional ou agrilhoados em ritualísticos modos de compreensão do fenómeno religioso, sem os quais não se entendem, alguns crentes podem não perceber, e recusam, esta decisão. Não terão ainda percebido que esse fascinante inexplicável, que se diz com as ferramentas da fé e da espiritualidade, ganha contornos através da experiência humana em interdependência e corresponsabilidade.

O calendário gravará, para memória futura, um antes e um depois deste momento. O músculo resiliente determinará a sua dimensão, mas as estruturas religiosas mostram, na circunstância, estar do lado certo desta história.

 

Joaquim Franco é jornalista e trabalha na SIC

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