
“A novidade que nasce em cada manhã é ofuscada pelo hábito e pela incessante busca pelo mesmo, o que faz desaparecer em nosso horizonte a singularidade e a potência de cada instante.” Foto © Ruvim / Pexels
Quantas vezes não perdemos a singularidade e o significado profundo de um momento, quando, com o passar do tempo, sentimos que nossos dias vão ficando cada vez mais indiscerníveis em nossa memória? Quem nunca teve a sensação de que a vida está correndo e que estamos sempre atrasados em relação a ela? Além desse estranhamento, cresce uma sensação em nosso ser de que estamos a perder algo, continuamente, bem diante de nossos olhos, algo está se perdendo. Os dias podem se transformar em mera repetição, parece que todos os dias são iguais, a mesma rotina, a mesma sequência e, de repente, somos surpreendidos pelo tédio e perdemos o novo; a novidade que nasce em cada manhã é ofuscada pelo hábito e pela incessante busca pelo mesmo, o que faz desaparecer em nosso horizonte a singularidade e a potência de cada instante.
O filme O Feitiço do Tempo, de 1993, dirigido por Harold Ramis, aborda essa relação que estabelecemos com o tempo de um modo criativo e bem-humorado ao contar-nos a história do meteorologista Phil, interpretado por Bill Murray, um homem arrogante, vaidoso e petulante, que todos os anos precisa viajar até uma cidade pequena para cobrir o dia da marmota. Nesta cidade, há uma tradição de que a marmota pode prever a duração do inverno. Phil odeia ter que fazer esse trabalho, ele acha ridículo toda essa tradição interiorana. Então, junto com sua produtora, Rita (Andie MacDowel), e o motorista Larry (Chris Elliott), ele embarca em uma jornada para mais uma vez ter que cobrir aquele evento que ele julga ser enfadonho e sem sentido. Entretanto, o que era para ser somente mais um dia irritante, acabou tornando-se seu eterno pesadelo. Se passar um dia naquela cidade já era insuportável para Phil, imagina ele ter que viver repetidamente o mesmo dia todas os dias? É exatamente isso o que acontece e, sem nenhuma explicação, em todas as manhãs, Phil acorda no dia da marmota.
Ele está preso em um eterno retorno. Ele acorda, e tudo se repete, de novo e de novo. O filme incorpora a ideia de repetição, muito semelhante ao mito de Sísifo que, por ter enganado os deuses, é condenado a rolar uma pedra até o cume de uma colina, assim, a cada vez que alcançasse o seu objetivo, a pedra rolaria colina abaixo, desse modo, Sísifo deveria retornar para novamente ter que iniciar sua subida com a pedra. Albert Camus, em seu livrou O Mito de Sísifo, utilizou-se dessa história mitológica para exemplificar a situação humana. Para o filósofo francês, o absurdo da nossa existência é semelhante a tarefa de Sísifo: estamos condenados a empurrar o peso da falta de sentido de nossas vidas. Vivemos uma vida mecânica, os acontecimentos se sucedem em nossa existência de tal forma que ficamos ausentes de nós mesmos; perdemos o ponto de contato com a experiência, os dias são insonsos e o hábito faz da vida uma pedra que devemos empurrar até o fim de nossos dias.
Em um determinado ponto na narrativa, algo que percebemos é que, embora o mesmo dia se repita infinitamente para Phil, o como ele experimenta essa repetição é sempre diferente. Desse modo, o dia se repete, mas, ao mesmo tempo, não é mais o mesmo dia, precisamente porque o dia se repetiu. Se Phil não consegue avançar em quantidade de dias no calendário, por outro lado, ele se aprofunda em intensidade em sua repetição. Neste ponto, o personagem passa por uma transformação: o seu egoísmo vai desaparecendo e dando espaço para a alteridade. Ele começa a se interessar pelas pessoas, a conhecer seus problemas e, a cada novo (mesmo) dia, ele se empenha em ajudá-las. Seja para socorrer alguém que precisa de auxílio para trocar um pneu, ou para tentar salvar a vida de um idoso pedinte, todos os dias, ele procurar dar o melhor de si para os outros. Sem dúvida, uma das cenas mais comoventes é ver Phil tentando salvar a vida do idoso. Este senhor nos é apresentado desde o início do filme, mas Phil, assim como expectador, ignora sua presença, mas ele, e também nós, mal sabíamos que aquele seria o último desse senhor, e mesmo sabendo que no fim do dia o idoso irá falecer, Phil continua tentando salvar sua vida. Os dias deixam de ser mecânicos e repetitivos para Phil a partir do momento em que ele encontra sentido em sua generosidade e alteridade, passando, portanto, a viver intensamente, encontrando nas coisas mais importantes da vida, o significado único de cada instante e pessoa, aquela com quem ele esbarra e compartilha o tempo.
A partir da jornada de Phil, O Feitiço do Tempo nos mostra que, embora possamos cair no tédio do hábito ao viver cada dia como se fosse o mesmo, nossas ações e nossa interioridade são o que determinam nossas experiências significativas com o tempo. Cada dia pode ser diferente, mesmo que nossa rotina faça parecer que os dias são os mesmos. O hábito camufla de nossos olhos o que realmente importa. Podemos até saber previamente o que acontecerá quando alcançarmos o cume da colina, mas a esperança consiste no caminhar insistente que procura ver o sentido que se esconde na dor. Phil sabia que aquele idoso iria falecer no fim do dia, mesmo assim, ele tentava agir diferente para encontrar uma forma de salvá-lo, percebendo o novo na raiz da repetição, já que não importa se sabemos que no fim do dia a pedra que empurramos irá descer rolando novamente da colina, é sempre outra subida para aquele que não desiste daquilo que está perdido; e precisamente por continuar, por não desistir, tudo é novo e nada de fato se perde.
Referências
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2020
Presley Henrique Martins é graduado em Filosofia e mestre em Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil. Atualmente, é doutorando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), conduzindo parte do seu período de pesquisa na University of Copenhagen – Københavns Universitet, Dinamarca. Pesquisa o pensador dinamarquês Søren Kierkegaard, bem como a relação entre religião, existência, literatura e cinema.