
Em Bangui, capital da RCA, é proibido fotografar em locais públicos. Esta foi a imagem possível. Foto: Bangui, RCA © Luis Castanheira Pinto
República Centro Africana. Custa dizer. Por tantas razões. Nome comprido. Podia ser outro. Libéria. Níger. Sudão. Mali. Chade. Nomes simples. Curtos. Sintetizam fácil o ADN de miséria infra-humana da África subsariana. Mas não. A República Centro Africana é diferente. O nome. Porque a miséria, essa, é ainda mais miserável ao centro. Sem outro desígnio, chamou-se assim. A república que está mesmo no centro de África. Chamemos-lhe, pois, RCA. Como também lhe chamam os milhões que lá habitam e os milhares que a devoram.
Não é só o nome. Custa sempre dizer RCA. Mesmo em abreviado. É a designação do mau. Do que o nosso entendimento ético não permite processar. A hipocrisia humana – a nossa vergonha colectiva – desenhada num mapa. Não quadra. Queremos o bem. Procuramos o bem. Proclamamos o bem. Mas a RCA existe. Desejamos não ver. Desviar o olhar. Escusar as necessidades sobejas do Norte das vísceras de sangue e sofrimento dos que ali vivem. A deformação estética que desinstala. A RCA deveria estar nas margens. Na periferia. E está lá, bem no centro. Como o nome indica.
O convite chegou sem aviso. Jantar mais logo. Em casa de Sua Excelência. Aceitámos. Fomos. Acabara de escurecer. Ruas sem luz nem asfalto. Becos escuros. Intimidantes. Não há elegância urbanística em Bangui. Há caminhos. Maus. Todos. Chegámos sem saber. Negrume. Um portão sem sinais disso. O guarda à porta. Metralhadora pois claro. Não saiam do carro. Conversas segredadas. A autorização esperada. Saímos. Pés na terra suja. Lembremo-nos, não há asfalto nem passeios. Só terra. E lixo. E dejetos. Entrámos pelo portão estreito. Parecia das traseiras. Era a entrada principal.
Sejam bem-vindos! O encanto desta expressão inaugural. Universal. Acompanhada de um sorriso sincero, aconchega-nos a alma até ao ninho. Casa modesta. A mobília mínima. A ventoinha que roda num esforço inglório, réplica do ar condicionado que nunca existiu. A bebida oferecida. A conversa distendida no sofá gasto. A refeição à mesa. As travessas embrulhadas em papel de prata. O sabor maravilhosamente indizível daquela refeição humilde. A inquietude constante de querer agradar. O brilho no olhar. O prazer da companhia. A conversa solta. A intimidade cúmplice de um momento roubado ao protocolo. Meu Deus. Que belo é o sopro divino quando chega pelo olhar grato e feliz daquele que acolhe. Sobretudo ali. Na periferia das periferias. Mesmo ali no centro de África.
Nessa noite, como agora, invadem-me repetidas vezes as palavras ditas sem rodeios pelo querido Gustavo Gutierrez num encontro de “anciãos” da JECI-MIEC, em Nice. Correria talvez o ano de 2001, não me recordo exactamente. Pequenino, sentado ao meu lado, combativamente humilde, disse de forma a gravar indelével a memoria e os corações dos presentes: “Chez les pauvres, habite encore le plus grand réservoir d’utopies”.
Luís Castanheira Pinto é licenciado em economia, tem-se dedicado às questões do conhecimento, aprendizagem e desenvolvimento de competências e trabalha no Banco Mundial, em Washington DC (Estados Unidos). É casado e pai de três filhos. Viveu anteriormente no Porto, Lisboa, Bruxelas e Copenhaga.