Não, não é uma novela camiliana. Em pleno século XXI, em muitos pontos do globo, tais factos acontecem com a conivência de todos, inclusive das autoridades. No Expresso de 02/07, no artigo “O triste destino das noivas à força”, o jornalista Mauro Mondello fazia uma reportagem no Quirguistão sobre esse assunto e entrevistava mulheres e activistas que pretendem consciencializar as raparigas para esta bárbara realidade.
Por coincidência, uma jovem mulher desse país que já conhecia há uns anos, em Portugal, contou-me recentemente toda a história da sua vida que reafirma o conteúdo do artigo que lera no Expresso. A meu pedido, prontificou-se a relatá-la.

“Selima [nome fictício], tenho 33 anos e cheguei a Portugal em 2012.”
Chamo-me Selima [nome fictício], tenho 33 anos e cheguei a Portugal em 2012. Infelizmente, o meu pai faleceu quando eu tinha 10 anos. Sou a mais nova de quatro irmãos. Aos 13 anos, fugi de casa para a Rússia porque os meus tios queriam-me casar. Na Rússia, podia viver sem documentos por ser do Quirguistão. Queria estudar lá, mas não pude porque era menor e estava só no país. Fui trabalhar na restauração durante uns seis ou sete meses.
Ameaça, fuga, castigo e um curso
Quis regressar ao meu país, mas os meus tios disseram ao meu irmão mais velho – que sempre me protegeu, tal como a minha mãe – que se voltasse, podia ser lapidada. Os meus “protectores” defenderam-me e eu regressei. No Quirguistão continuei a estudar e quando tinha 15 anos, os meus tios voltaram ao mesmo.
Fugi para o Cazaquistão e lá trabalhei também em restaurantes. Mas sentia-me só e quis novamente regressar, embora tivesse muito medo de morrer. Mais uma vez o meu irmão mais velho e a minha mãe tomaram a minha defesa e eu regressei. Mas fui castigada: fiquei presa em casa, durante dois meses; não podia sair. Depois, continuei a estudar.
Fiz o curso de enfermagem e trabalhei num centro hospitalar. Aos 22 anos, os meus tios voltaram a querer-me casar. Fugi novamente para a Rússia e lá conheci um rapaz da mesma idade e da minha etnia e engravidei. Quando ele soube que estava grávida, desapareceu. Continuei a viver lá e a trabalhar. Um amigo ajudou-me muito. Não podia contar com a minha família, pois estava grávida e podiam-me mesmo matar. Também não podia abortar porque já tinha cinco meses de gravidez. Chegou a hora do parto, o meu amigo levou-me ao hospital e aí desmaiei. Quando acordei os médicos disseram-me que o bebé morrera porque eu tinha a tensão alta.
Novas fugas e Portugal
Regressei ao Quirguistão, com a ajuda do meu irmão mais velho e da minha mãe, mas nunca disse o que acontecera. Continuei a trabalhar no hospital e novamente me queriam casar. Fugi para a Lituânia. Cuidei de crianças, trabalhei na restauração. Mas não tinha documentos e regressei ao meu país. E mais uma vez os dois membros da minha família tomaram a minha defesa. Novamente surge a proposta de casamento e eu desta vez fugi para a Espanha, mas não consegui nada e regressei. O meu irmão mais novo disse então: “Ou casas ou vais para Portugal e nunca mais voltas cá.”
Porquê Portugal? Porque tinha cá família. Aqui conheci um rapaz que não era muçulmano e foi um escândalo. A família que vivia aqui telefonou para a minha mãe, irmãos, tios, discutiram todos esta minha nova rebeldia. Entretanto, comecei a viver com esse rapaz e engravidei. Os meus trabalhos não acabaram aqui. Comecei a ver que ele não me ligava muito – sobretudo, estando eu grávida – e decidi, com a apoio da minha mãe, ir para a Rússia para a casa de uma pessoa da minha família que não ligava a estas coisas de ser ou não muçulmano.
Eu necessitava de ajuda e ele, já velhote, dava-ma. Retomei o trabalho na restauração, a minha barriga começou a crescer… e eis que um primo meu, no restaurante, conheceu-me e foi logo contar a história a toda a minha família do Quirguistão. A minha mãe telefonou-me e antes do parto regressei ao Quirguistão para ter o bebé. O menino nasceu e então os meus tios e irmão mais novo acharam que era mesmo altura de eu casar … tirando-me o bebé recém-nascido para o dar a um casal sem filhos porque os homens, nesta situação, não querem filhos de outro.
Recusei e disse-lhes – e era verdade – que o pai do meu filho me ajudara monetariamente. Perante isso, eles cederam e eu regressei a Portugal. Continuei a viver com ele, nasceu outro filho. A pandemia não ajudou nada e o facto de ter um bebé de meses impediu-me de trabalhar. Vamos a ver se agora, quando ele crescer mais um bocadinho e for para a creche, eu endireito a minha vida. Já fiz aqui trabalho doméstico em casas particulares e gostaram de mim.”