
Foi com enorme satisfação que participei, durante alguns dias, num grupo de cristãos que se propunha “rezar ao ritmo da terra”.” Foto © site “Casa Velha-Ecologia e Espiritualidade”
Nestas últimas semanas temos vivido tempos difíceis, nos quais dolorosamente percebemos o significado real da expressão, muitas vezes ouvida, “uma Igreja santa e pecadora”. É-nos fácil reconhecer a sua santidade, não só porque é constantemente lembrada nos grandes textos do cristianismo, mas também porque o convite que permanentemente nos é feito se concretiza na exortação “Sede perfeitos como o vosso Pai é perfeito” (Mt 5, 48). A exigência deste apelo é muitas vezes esquecida pois aceitamos com naturalidade o facto de nos sentirmos, e de facto sermos, pecadores.
Em criança aprendi no Catecismo que “há pecados que bradam aos céus”, algo que nessa altura nunca percebi e para o qual me davam explicações vagas. Hoje sei que os abusos sobre as crianças ou sobre os elementos mais frágeis de uma comunidade podem integrar-se nesse rol. E na situação que presentemente vivemos, coloco-me ao lado de todo(a)s que não só têm denunciado essas situações, como também daquele(a)s que exigem reparação – e não se trata de uma questão de vingança mas sim de justiça para com as vítimas.
Nos dias que ultimamente vivemos senti-me traída pela displicência, confusão e superficialidade com que a hierarquia da Igreja respondeu a esta situação. E orgulhosa com o facto de ter havido vozes críticas das bases, denunciando esse modo de agir (ou de não agir). Tornava-se-me necessário um tempo de reflexão e de distanciamento. Assim, foi com enorme satisfação que participei, durante alguns dias, num grupo de cristãos que se propunha “rezar ao ritmo da terra”. O local foi a Casa Velha, em Ourém; os participantes eram maioritariamente jovens, algumas crianças, e um pequeno grupo de gente mais velha, no qual me incluí. Presidiu a este encontro um padre que, para além das celebrações, também trabalhou a terra, cavando, podando e abrindo valas, como toda a gente.
A proposta para iniciarmos o trabalho nos campos foi tratar do que era necessário e simultaneamente fruir da beleza em que estávamos integrados, contemplando, sem no entanto deixar de agir, pois o trabalho era muito e urgente. Assim, cortámos ervas daninhas, podámos árvores e plantas, envasámos, construímos uma horta e tratámos de outras, num ambiente de cooperação em que o mais forte ajudava o mais fraco e o mais sabedor o ignorante. Embora as nossas tarefas fossem bem delimitadas – nas mais das vezes implicando arrancar e destruir muita coisa inútil e prejudicial –, todas estas actividades nos davam um sentido de pertença a um todo no qual também nos integrávamos. E muitas vezes me lembrei do meu filósofo preferido, Baruch de Espinosa, para quem Deus e a Natureza se identificam – Deus sive Natura (Deus ou a Natureza) – escreveu ele na sua Ética.
Nesses três dias que passámos a cuidar da terra houve troca de experiências, partilha de testemunhos, orações cantadas e rezadas. “Ao Ritmo da Terra” foi o slogan que acompanhou este encontro. Atendendo a esta proposta procurámos reencontrar o nosso próprio ritmo, integrando-o neste momento particularmente difícil que a vida da Igreja portuguesa atravessa. Mas tal como na natureza há morte e ressurreição, foi-nos lembrado, como proposta de meditação, um excerto do Eclesiastes:
“Para tudo há um momento e um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu: tempo para nascer e tempo para morrer, tempo para plantar e tempo para arrancar o que se plantou, tempo para matar e tempo para curar, tempo para destruir e tempo para edificar, (…) tempo para amar e tempo para odiar, tempo para a guerra e tempo para a paz. (Eclesiastes 3, 1-8).
Esperamos que este tempo em que rezámos ao ritmo da terra possa ser uma ajuda para a reconciliação da nossa Igreja e de nós mesmos com ela.
Maria Luísa Ribeiro Ferreira é professora catedrática (aposentada) de Filosofia da Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa.