
Pormenor da capa do livro Roma, Temos um Problema, de João Francisco Gomes, sobre a problemática dos abusos sexuais de crianças na Igreja Católica
Podemos ter um vislumbre do conteúdo deste livro nesta afirmação: “Durante 20 séculos, a Igreja soube da existência de pedófilos e de abusadores sexuais entre o seu clero, embora nem sempre tenha lidado com eles da mesma maneira. Em alguns períodos da história, os abusadores foram perseguidos até à morte pela própria instituição; noutros, prevaleceu sobre a justiça a protecção da imagem pública da Igreja através da ocultação dos crimes. Porém, em todos os momentos do seu longo percurso, sem excepção, a hierarquia da Igreja conheceu o problema e a sua especial gravidade” (p. 21).
Roma, Temos um Problema pode ser apresentado em quatro partes, assumidas aliás pela organização que o autor lhe dá: um primeiro levantamento histórico, sobre como o problema foi sendo encarado e resolvido ao longo de alguns séculos, seguindo aliás de perto algumas investigações sobre o tema publicadas no estrangeiro; uma segunda parte sobre casos marcantes a nível internacional, incluindo alguns pouco conhecidos; uma terceira parte sobre os casos portugueses até agora vindos a público; e uma quarta parte onde se apresenta uma perspetiva de reforma, a partir da cimeira de 2019 no Vaticano. Em síntese, faz-se uma descrição e análise de causas e consequências sobre o que aconteceu em 20 séculos de história do cristianismo (sobretudo ocidental), no capítulo dos abusos sexuais, para mostrar que o problema esteve sempre presente, de diferentes formas, também como reflexo de uma “relação complexa com o sexo” que o cristianismo foi mantendo em grande parte dos vinte séculos da sua história, como também se recorda (p. 24-25)
Com um importante manancial de informação, resultado da sistematização feita pelo autor a partir de diferentes fontes, o material é organizado de modo a permitir a leitura cronológica, embora com várias retrospectivas ou alguns avanços no tempo, consoante a necessidade e o propósito do que vai sendo abordado pelo autor, o jornalista João Francisco Gomes (JFG).
E o que acontecia nos primeiros séculos? O percurso começa por recordar excertos das cartas de São Paulo e da Didaqué, texto do séc. I/II, que condensa alguma doutrina moral; nessa altura, os cristãos viam-se como um grupo que propunha e tinha de viver uma moral diferente daquela que era comum na sociedade; exemplo disso é a Didaqué, espécie de catecismo dos primeiros cristãos, que propunha um código de conduta sobre questões éticas e morais como a propriedade, a hospitalidade ou os deveres de senhores e de escravos.
A moral estrita a que os cristãos se queriam obrigar olhava para questões como o abuso como algo de grande gravidade. E essa ideia predomina durante vários séculos, como se vai explicando no livro, com alguns altos e baixos. Não falta, ao longo do tempo, doutrina emanada de concílios de cristãos realizados na Península Ibérica ou obras marcantes como a Regra de São Frutuoso e o Livro de Gomorra, que JFG nos explica e nos desvenda ao longo do texto; é uma viagem que vale a pena fazer através do livro. Em algumas ocasiões nesse trajecto, a questão é abordada lateralmente, seja por causa da moralidade do clero (ainda não sujeito à disciplina do celibato e a uma organização eclesiástica como a de hoje), da confissão ou da homossexualidade – ou, até, de questões tão prosaicas como as heranças.
Casos paralelos

Se durante séculos se percebe que o problema foi existindo sob diversas formas, no século XVII há já uma história que pode ser vista como paralela às de hoje, no sentido do encobrimento: a do fundador dos padres escolápios, congregação dedicada à educação de crianças pobres: José de Calasanz, o fundador, encobriu episódios de abuso, embora tenha tentado acabar com eles. O que se passou? A minha interpretação, menos cáustica que a do autor, é que Calasanz ou fazia o que a hierarquia lhe ditava ou ele próprio seria desterrado e os abusos e seu encobrimento continuariam a acontecer na mesma.
Outro momento paralelo ao actual regista-se no século XVIII, quando o Papa Bento XIV reconhece explicitamente a centralidade da protecção das vítimas. Na constituição apostólica Sacramentum pœnitentiæ, de 1 de Junho de 1741, Bento XIV abordou o “tema quente da solicitação” de abusos através do confessionário e o que documento “foi verdadeiramente redefinidor do pensamento da Igreja sobre os abusos sexuais – ao ponto de a sua influência ter perdurado até aos escândalos contemporâneos”. Foi um ponto de viragem por ter reconhecido “explicitamente a protecção das vítimas, tornadas especialmente vulneráveis pela confissão” (p. 99-100).
No século XIX essa configuração muda com um documento do Papa Pio IX. A intenção era boa: pretendia-se acabar com muitos abusos no âmbito da relação estabelecida no confessionário. A regra passou a ser o sigilo da denúncia (inicialmente, até com a ideia de proteger os acusadores). Mas, se as intenções eram boas, elas viriam encher ainda mais o inferno em que muitas vidas mergulhariam, nas décadas e dois séculos seguintes.
O livro muda, aqui, do registo histórico, para o da linguagem jornalística, iniciando uma viagem pela realidade e pelas principais tragédias, mais ou menos conhecidas, das últimas décadas: Estados Unidos da América (incluindo Boston e Pensilvânia), Austrália, Alemanha, Irlanda, Chile… Nos EUA, avulta o caso de Boston, surgido em 2002 pela investigação do Boston Globe e mediatizado pelo filme Spotlight, que acaba por ser uma etapa importante no tratamento da questão, sobretudo porque pela primeira vez fica claro também o encobrimento dos bispos – no caso, o cardeal Bernard Law. O filme transmitirá depois a ideia de que as denúncias começam com esse caso mas, de facto, elas já vinham de trás: no início da década de 1990, por exemplo, já houvera casos muito graves no Canadá e EUA, que deram origem às primeiras medidas de combate à tragédia – várias delas recordadas também no livro.
O papel de João Paulo II no problema é posto em causa no livro, e bem, confirmando que foi muito apressada a decisão de o canonizar. Claramente, o Papa Wojtyla teve conhecimento de elementos sobre dois casos terríveis – Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, e o cardeal McCarrick, que chegou a arcebispo de Washington DC (em relação a este último, o relatório do Vaticano confirma isso mesmo).
Tenho para mim que, no final dos anos 1990 e início do novo século, a débil saúde de João Paulo II fazia com que, de facto, o governo da Igreja estivesse na mão de duas personagens sobre as quais têm vindo a público dados que as colocam como tendo tido um papel muito funesto: o cardeal Angelo Sodano, então secretário de Estado do Vaticano, e o hoje também cardeal Stanisław Dziwisz, secretário de João Paulo II (por exemplo, o jornal Il Fatto Quotidiano publicou, pouco depois da eleição do Papa Francisco, um extenso trabalho que denunciava isso mesmo). Eram Sodano e Dziwisz quem filtrava a informação que chegava – ou não – ao Papa e não me admira que eles filtrassem o que não interessava. Quando João Paulo II chama ao Vaticano, em 2002, os cardeais norte-americanos, mesmo já muito débil, o seu discurso é muito duro, mas será muito difícil algum dia conhecer o que realmente ele sabia sobre o tema – e, nomeadamente, sobre Maciel e McCarrick. Além disso, o tipo de situações e o número de casos averiguados ainda não eram o que são hoje e a actuação foi respondendo ao que nessa altura se conhecia.
Mudar as mentalidades

Finalmente, JFG propõe uma viagem pelos 19 casos que já apareceram em Portugal e que são inventariados (a propósito: numa eventual reedição, valeria a pena acrescentar uma cronologia e uma tabela numérica dos casos sobre os vários países referidos).
Aqui troco de lugar com o autor e sou mais céptico em relação às observações que são feitas no livro sobre Portugal: apesar do passo dado no sentido da criação da comissão independente de estudo sobre os abusos, falta ainda que os vários bispos que fizeram comentários desvalorizando a importância de um qualquer levantamento histórico venham a público admitir que mudaram de opinião. Claramente, terá sido a sucessão de vozes críticas que fizeram com que a Conferência Episcopal adoptasse esta importante decisão: primeiro, a pressão vinda do Vaticano, com a visita a Portugal do padre Hans Zollner, em Maio de 2021; depois, a de alguns bispos (cardeal António Marto e José Ornelas, entre outros) e da carta que 276 católicos escreveram a pedir essa mesma investigação.
O livro acaba com a memória do que foi a conferência de Fevereiro 2019 no Vaticano, sobre a protecção de crianças e pessoas vulneráveis. Na conferência, destacou-se o papel das vítimas e o importante discurso da jornalista mexicana Valentina Alazraki – e o livro sublinha esses dois elementos.
Algumas conclusões são possíveis a partir da leitura desta obra:
1) Esta realidade não mudará só com leis, é preciso mudar a mentalidade, como recorda o jornalista Austin Ivereigh, citado no livro: “Foi só depois de terem mudado as mentalidades que o Papa Francisco introduziu leis (…). Porque é que ele não introduziu estas leis antes? Porque sabe que podemos ter todas as leis, mas, se a mentalidade não mudar as leis não servem para nada. Em primeiro lugar, ele procura uma conversão de mentalidades; depois, introduz as leis para suportar essa mudança.” (p. 370) A Igreja já fez muito e “está hoje noutro nível de compreensão” sobre os abusos sexuais e é hoje uma “das instituições do mundo mais bem apetrechadas para lidar” com esses casos; mas, como ficou dito, as mentalidades não mudam só com leis ou a vontade do Papa (p. 380-381).
2) Conhecer a verdade, restaurar a confiança, dar a palavra aos crentes e promover uma profunda reforma da Igreja, são algumas das urgências para enfrentar este flagelo – escrevi isto em 2018, na sequência dos casos da Pensilvânia e do Chile, e mantenho-o aqui, pois a leitura da obra de JFG só reforça estas propostas. Nesta perspectiva, o Sínodo que a Igreja está a viver deveria ser uma ocasião propícia para que também a questão dos abusos fosse resolvida com o contributo dos crentes. Podemos acrescentar que é fundamental ainda acompanhar e cuidar das vítimas e tratar dos abusadores (eles próprios muitas vezes ex-vítimas)
Uma das mais graves crises do catolicismo

3) Já evolui em relação à análise sobre a profundidade desta crise: em 2010, pensava que ela era a mais grave dos últimos 100 anos; em 2018, com o Chile e Pensilvânia, ficou claro que ela já era comparável à crise de abuso de poder, clericalismo, formas de nepotismo, centralidade da instituição em detrimento do evangelho e má gestão de bens que levou à Reforma do século XVI.
Neste momento, é evidente que ela é uma das mais graves crises que o cristianismo e a tradição católica enfrentaram nestes 20 séculos. E só uma investigação universal, em cada diocese ou país, feita por iniciativa da Igreja (ideia já defendida pelo padre norte-americano Thomas Reese), mas entregue a especialistas independentes, incluindo mulheres, pode ser um primeiro passo para saber o que se passou, curar as feridas e introduzir mecanismos de protecção e segurança para enfrentar o futuro de forma diferente.
4) A absoluta necessidade e urgência de reconfigurar a formação dos padres, nomeadamente no campo da afectividade e sexualidade, bem como no âmbito do seu ministério, que esteja mais de acordo com a dimensão de serviço própria do cristianismo e não com a dimensão de casta sacerdotal recuperada do judaísmo antigo.
Neste campo, o livro cita várias afirmações do Papa e de outros protagonistas contra o abuso de poder e de consciência como base do abuso sexual; não posso estar mais de acordo com elas; e vejo que, em muitos casos, o abuso de poder, o considerar-se “dono” do evangelho e da instituição subsiste – por causa da formação dos seminários, outra questão aflorada no livro a partir de afirmações de várias pessoas.
Na carta entregue aos bispos do Chile, em Maio 2018 (para mim, talvez o mais completo, mais duro e mais importante documento sobre o tema, a par da carta de Bento XVI aos católicos da Irlanda, e que na minha perspectiva poderia ter merecido um tratamento mais aprofundado), Francisco escreve: “Essa psicologia de elite ou elitista acaba por gerar dinâmicas de divisão, separação, ‘círculos fechados’ que desembocam em espiritualidades narcisistas e autoritárias nas quais, em vez de evangelizar, o importante é sentir-se especial, diferente dos demais, deixando assim em evidência que nem Jesus Cristo nem os outros interessam verdadeiramente. Messianismo, elitismos, clericalismos, são todos sinónimos de perversão no ser eclesial.” Repitam-se algumas palavras: elitista, divisão, espiritualidades narcisistas e autoritárias, messianismo, perversão…
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Pequenos pormenores que podem ser revistos numa eventual segunda edição (como a alusão a Pedro como “bispo de Roma e primeiro Papa”, conceitos que na altura não existiam ou a Idade Média “esticada” até ao início do século XVI) não deslustram em nada a qualidade deste livro e a competência da escrita, o que merece ser sublinhado nos tempos que correm. Além do mais, a obra é servida por uma boa capa e um bom título, a remeter para a histórica viagem da Apolo XIII à Lua que, como sabemos, poderia ter acabado mal. Perante o problema surgido a bordo na nave espacial, foi o esforço conjunto de uma vastíssima equipa que ajudou a que as vidas dos três astronautas pudessem ser salvas. Aqui, também só o envolvimento de todos – vítimas, responsáveis, comunidade eclesial – pode ajudar a remediar o que se passou. E este livro é uma boa fonte de informação para nos dizer o que não pode voltar a acontecer. Por isso, o autor está de parabéns.
Roma, Temos Um Problema – Como a Igreja Católica lidou com dois mil anos de abusos sexuais, de João Francisco Gomes
Ed. Tinta-da-China, 2021
430 pág., 21,90 €
(Este texto é uma versão corrigida e alargada da intervenção de apresentação do livro, em Novembro, em Lisboa.)