[O flagelo que não acaba – IV]

Rupnik e Anatrella: Um antes e um depois na realidade dos abusos?

| 12 Fev 2023

abusos sexuais na Igreja; ilustração © Catarina Soares Barbosa

 Ilustração original de © Catarina Soares Barbosa para o 7Margens

 

O último caso tarda em chegar. Também sei que será difícil que venhamos a ver o último caso. É mais um desejo, quase uma utopia, do que uma realidade que possa acontecer.

Ainda não saímos de um caso e já estamos a entrar noutro; se um é escandaloso, o seguinte não é menos. Assim, enquanto continuamos surpreendidos a assistir ao silêncio em torno do – ainda? – padre jesuíta Rupnik, um silêncio que fere as vítimas e as volta a re-vitimizar, chega outro caso também mediático e também envolto em silêncio, o caso [do padre francês Tony] Anatrella que, por sinal, continua a pertencer ao estado clerical.

Ambos os casos, por diferentes razões, são tremendamente mediáticos e, por isso mesmo, deveriam ter sido tratados mostrando a maior sensibilidade possível para com as vítimas.

Em vez disso, não estarão de algum modo a ser protegidos os infratores? Sobre Rupnik há um gotejar de novas vítimas. Sobre Anatrella não será difícil que apareçam. Em ambos os casos, as suas atividades, muito diferentes entre si, parecem ter sido os seus escudos e álibis. Todo o acto de agressão é repugnante em si mesmo e reprovável, não importa quem o cometa. Nestes dois casos, a perversão foi levada a extremos impensáveis.

Quem representava a beleza do evangelho em imagens, quem era considerado um mestre dos Exercícios Inacianos, e um mestre espiritual, Rupnik, revelou-se um jovem predador que começou a agir como tal um ano após ser ordenado, pondo em prática aquilo que devia aprender na sua bem abastecida videoteca de pornografia, não respeitando nada nem ninguém, a Trindade incluída, a fim de atingir o seu propósito de agredir sexualmente uma comunidade de freiras.

Quem era considerado um perito como psicoterapeuta, Anatrella, aproveitava-se dessa sua condição no consultório para abusar de quem precisava da sua ajuda profissional, para além de se manifestar sempre que podia, inclusive com livros onde apoiava e expandia as suas ideias, contra todas as pessoas LGBTI de forma rígida.

Em ambos os casos algo falhou no Dicastério para a Doutrina da Fé. Em ambos os casos há demasiadas perguntas sem respostas. Em ambos os casos, prevaleceu o agressor sobre as vítimas. Até hoje não sabemos onde estão estes dois agressores, nem que tratamento estão a seguir (porque é evidente que o necessitam), nem quem os acompanha espiritualmente. Alguém poderá dizer: mas e então o direito à presunção de inocência e o direito à intimidade? E a resposta poderia ser: e o direito das vítimas de saberem? E o seu direito a serem tratadas com respeito?

Poderíamos pensar que estes dois casos podem supor um antes e um depois na realidade dos abusos sexuais na Igreja? Poder, podíamos. Mas que isso vá mesmo acontecer ainda estamos para ver.

O silêncio “oficial” que envolveu e ainda envolve os dois casos já é uma declaração de intenções. Pouquíssimas vozes entoam o mea culpa; algumas sim, e claramente, o que torna ainda mais evidente o silêncio de muitas outras. Esse silêncio comporta um manifesto desprezo pelas vítimas, cujo clamor começa a ter as características de um salmo de lamentação.

Nada prenuncia que alguma mudança profunda esteja a ser delineada no Dicastério para a Doutrina da Fé (como eu gostaria de estar enganada!) exceto a mudança do presidente, já prevista e dentro da norma. E isto leva-me a fazer mais uma pergunta: que papel desempenham aqueles que trabalham nesse dicastério? Quem garante a independência e imparcialidade nas falhas que se detectam nalguns processos? Não quero criar dúvidas, mas a condição humana é isso mesmo: condição humana.

O choque que estes dois casos causaram colocam-nos perante a necessidade de fazer uma avaliação séria e urgente dos factos, dos comportamentos daqueles que têm acompanhado os processos desde as denúncias, de como se têm impelido ou abrandado os tempos, enfim, de como foram geridas duas pastas cujos nomes de referência eram Rupnik e Anatrella.

E tudo isso para pensarmos em algumas mudanças para o futuro. E futuro imediato porque não podemos esperar muito mais. Como cristãos, deveríamos viver em permanente estado de atenção às vítimas. O nosso compromisso deve ser coerente com o nosso ser cristão. E o ser cristão também deve levar-nos a estar atentos sobre como se age nos casos de agressões sexuais e de outros delitos. Não seria demais se pedíssemos periodicamente explicações e transparência. E, já agora, pedir aos nossos pastores o mesmo comportamento que eles exigem aos outros.

O nosso silêncio e a nossa falta de envolvimento não nos farão cúmplices do sofrimento das vítimas? Não nos tornarão como o levita e o sacerdote que passam ao lado e deixam o homem espancado sem o ajudar?

Já que a Igreja não reconhece a sua responsabilidade objetiva em toda esta realidade, pelo menos, que o nosso silêncio não contribua para isso.

 

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Tradução de Júlio Martin.

 

Os silêncios de Pio XII foram uma escolha – e que custos teve essa opção?

“A Lista do Padre Carreira” debate

Os silêncios de Pio XII foram uma escolha – e que custos teve essa opção? novidade

Os silêncios do Papa Pio XII durante aa Segunda Guerra Mundial “foram uma escolha”. E não apenas no que se refere ao extermínio dos judeus: “Ele também não teve discursos críticos sobre a Polónia”, um “país católico que estava a ser dividido pelos alemães, exactamente por estar convencido de que uma tomada de posição pública teria aniquilado a Santa Sé”. A afirmação é do historiador Andrea Riccardi, e surge no contexto da reportagem A Lista do Padre Carreira, que será exibida nesta quarta-feira, 31 de Maio, na TVI, numa parceria entre a estação televisiva e o 7MARGENS.

Apoie o 7MARGENS e desconte o seu donativo no IRS ou no IRC

Breves

 

JMJ realizou em 2022 metade das receitas que tinha orçamentado

A Fundação Jornada Mundial da Juventude (JMJ) Lisboa 2023 obteve no ano passado rendimentos de 4,798 milhões de euros (menos de metade do previsto no seu orçamento) e gastos de 1,083 milhões, do que resultaram 3,714 milhões (que comparam com os 7,758 milhões de resultados orçamentados). A Fundação dispunha, assim, a 31 de dezembro de 2022, de 4,391 milhões de euros de resultados acumulados em três anos de existência.

Debate em Lisboa

Uma conversa JMJ “conectada à vida”

Com o objectivo de “incentivar a reflexão da juventude” sobre “várias problemáticas da actualidade, o Luiza Andaluz Centro de Conhecimento (LA-CC), de Lisboa, promove a terceira sessão das Conversas JMJ, intitulada “Apressadamente conectadas à vida”.

“É o fim da prisão perpétua para os inimputáveis”, e da greve de fome para Ezequiel

Revisão da lei aprovada

“É o fim da prisão perpétua para os inimputáveis”, e da greve de fome para Ezequiel novidade

Há uma nova luz ao fundo da prisão para Ezequiel Ribeiro – que esteve durante 21 dias em greve de fome como protesto pelos seus já 37 anos de detenção – e também para os restantes 203 inimputáveis que, tal como ele, têm visto ser-lhes prolongado o internamento em estabelecimentos prisionais mesmo depois de terminado o cumprimento das penas a que haviam sido condenados. A revisão da lei da saúde mental, aprovada na passada sexta-feira, 26 de maio, põe fim ao que, na prática, resultava em situações de prisão perpétua.

Especialistas mundiais reunidos em Lisboa para debater “violência em nome de Deus”

30 e 31 de maio

Especialistas mundiais reunidos em Lisboa para debater “violência em nome de Deus” novidade

A Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) acolhe esta terça e quarta-feira, 30 e 31 de maio, o simpósio “Violence in the Name of God: From Apocalyptic Expectations to Violence” (em português, “Violência em Nome de Deus: Das Expectativas Apocalípticas à Violência”), no qual participam alguns dos maiores especialistas mundiais em literatura apocalíptica, história da religião e teologia para discutir a ligação entre as teorias do fim do mundo e a crescente violência alavancada por crenças religiosas.

Agenda

There are no upcoming events.

Fale connosco

Autores

 

Pin It on Pinterest

Share This