“Quem são os que navegam, no meio da nossa noite, virados ansiosamente para os primeiros alvores de um Oriente real? (…) Mas, na realidade, se quisermos ser sinceros, seremos obrigados a confessar que já não esperamos nada.”
Teilhard de Chardin, O Meio Divino
“Façamos da sede um caminho.”
José Tolentino Mendonça, O Elogio da Sede

“O ser humano desespera porque foi feito para esperar. Quando a esperança se perde, é a própria humanidade que se perde.” Foto © Pixabay.
Lutar pela verdade, pela liberdade verdadeira, pela expansão dos horizontes existenciais dos seres humanos, pela esperança enfim. Lutar por um conhecimento mais pleno da nossa natureza, do nosso lugar no Todo, do sentido profundo da própria vida. Contribuir para que os homens se libertem de todos os vícios e cegueiras que os envilecem, que os impedem de se elevarem e conquistarem a sua grandeza pessoal, de serem felizes na plenitude da sua realização. Contribuir para que as pessoas sejam, realizando o bem, a beleza que lhes cabe, de acordo com as aspirações mais íntimas e profundas das suas almas. Para que sendo, nada lhes falte. Todas lutas necessárias, hoje mais do que nunca.
As pessoas estão tristes; vivem, no geral, vidas inautênticas, enfadonhas, rotineiras, sem sentido. Agarram-se ao que podem para não desesperarem. Sujeitam-se a toda a espécie de adições. Picam o ponto, vivem por defeito e inclinação. Relacionam-se e têm filhos porque acontece, ou porque assim acreditam trazer um pouco mais de sentido às suas vidas, não porque verdadeiramente o sintam como um absoluto necessário à sua vocação radical para uma vida mais ampla e um amor mais vasto.
Em nós, a vida chega a desesperar de si própria. Como é possível?
Talvez porque, em nós, a vida seja precisamente esperança de plenitude. Quer dizer, em nós, a vida sabe bem, na sua raiz, o seu destino e ponto de consumação. Ela quer ser sempre mais e mais ampla vida, até se realizar. Ela está em travessia, em evolução, entre a vida animal satisfeita e saciada com o imediato, e a vida total, plenamente consciente de si e plenamente livre, por isso senhora do seu destino. Destino que é transcendente, metafísico. Como é tão plena a Vida que a vida espera, a exigência de sentido é por isso, em nós, decisiva e premente. Porque a vida deseja ardentemente estar no caminho da Vida; e quando o não está, quando se desvia ou se perde, ou se põe a andar para trás, desespera, porque intimamente reconhece a medida do horizonte que assim perde e desbarata, ainda que não o saiba nomear. É porque está em nós radicado o Bem Absoluto, i.e. o Horizonte dos Horizontes de Vida, que a vileza nos surge como vileza, própria ou outra, ou pior do que isso, como perdição e desespero.
Suponho que todo o homem deseja, bem no fundo de si mesmo, uma vida isenta de toda a vileza e animalidade; de tudo aquilo que dissipa e cativa a liberdade em círculos de vício e mesquinhez. Todos queremos libertar-nos do ser determinado e demandar o nosso destino, parafraseando Martin Buber[1], porque a liberdade verdadeira conhece o seu destino. Porém, porque ainda estamos a aprender a ser livres, situados que estamos num estado intermédio de evolução para a consciência, frequentemente soçobramos e somos incapazes de viver e agir à altura e dignidade desse desejo. Mas só acabaremos por desesperar se não tivermos tornado consciente para nós mesmos de que há por que esperar. Isto é, se ao mau uso da nossa liberdade juntarmos a incapacidade de crer na perfectibilidade da alma humana e na promessa transcendente de uma nova e mais plena vida. Porque todos temos, em princípio, o desejo, mas nem todos o reconhecemos como desejo de consumação metafísica da Vida, para além dos estritos limites que imputamos ao mundo e à existência humana. Temos de acreditar que a resolução da vida, a sua plenitude e consumação, está contida na própria vida, e que a sua verdade não nos estará para sempre velada. Algures no tempo ou fora do tempo, vê-la-emos, como escreveu São Paulo, face a face.
O ser humano desespera porque foi feito para esperar. Quando a esperança se perde, é a própria humanidade que se perde, como escreveu Erich Fromm a partir da visão de Dante da entrada do inferno[2].
Mas como cultivar a esperança?
Nós, humanos, não nos podemos dar ao luxo, pela nossa natureza, de nos contentarmos com o que temos. Essa é a satisfação do animal saciado. Em muito menor grau podemos estar satisfeitos com o que somos, se o ser para nós consiste noutra forma de posse: estatuto, popularidade, reconhecimento, etc. O ser para nós é um constante sendo, isto é, um fazer-se permanente, caminhando no aberto do mundo e das realidades, mistérios e desafios de cada momento, sem nunca nos perdermos no mundo, ou seja, sem perdermos de vista que somos interioridade radical e substantiva por direito próprio, e que a realidade não se reduz aos objetos e à objetividade crua das coisas como nos aparecem, mas oculta um infinito inesgotável que é Deus.
Precisamente porque por natureza esperamos, por natureza somos insatisfeitos. Porque não nos contentamos – nem podemos jamais contentar-nos completamente – com o que temos, com o que conquistámos, material ou imaterialmente falando, buscamos frequentemente mais ter, como se isso servisse de paliativo à nossa crónica insatisfação. Mas isso é como beber água salgada para matar a sede. O que quer que tomemos como fim em si próprio, sempre a partir de uma visão do mundo como objetividade pura, vazia de Deus – dinheiro, estatuto, posse, fama, imagem, prazer, o próprio mal – acabará por nos exilar da corrente da vida, que só busca mais vida. Por outro lado, estar cada vez mais na corrente da vida passa por mais e melhor liberdade, e por obra feita das nossas mãos, mentes e corações, a partir do melhor e mais belo que podemos tirar de nós para ofececer ao mundo.
A evolução necessária para uma vida mais plena, livre, consciente, vasta e frutífera, exige que façamos da insatisfação um caminho. Há que abraçá-la como o motor mesmo da nossa evolução e realização própria, de tal maneira que, em obediência à própria dinâmica da nossa vocação para ser e para o Ser, saibamos esquecer continuamente o que está para trás e avançar sempre para diante[3].
Fazer da insatisfação um aguilhão para o melhor, o mais belo, o mais humano, o mais essencial e espiritual. É assim que se cultiva a esperança.
Porque somos seres-para-Deus.
Ruben Azevedo é professor e membro do Ginásio de Educação Da Vinci – Campo de Ourique (Lisboa).
Notas:
[1] BUBER, Martin, Eu e tu, trad. de Artur Morão e Sofia Fávila, Paulinas Editora.
[2] “Se o homem abandonou toda a esperança, ele cruzou os umbrais do inferno – que saiba ou não – e deixou atrás de si toda a sua humanidade.” (FROMM, Erich, A revolução da esperança, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1968).
[3] Paráfrase de São Paulo em Filipenses 3:13.