
“Meus queridos homens e mulheres, meninos e meninas, peçam licença para ocupar o mundo, mundo esse que por acaso não se lembrou de ter espaço para todos os que vê nascer.” Foto: Criança de rua em Kolkata (Calcutá), Índia. © Indrajit Das | Wikimedia Commons
Na rua sobrevive-se; como se a sobrevivência fosse causa imposta pela própria indignidade da condição humana.
Reparem bem: – Meus queridos homens e mulheres, meninos e meninas, peçam licença para ocupar o mundo, mundo esse que por acaso não se lembrou de ter espaço para todos os que vê nascer.
Não é só à repetição dos dias e noites que se sobrevive. Sobrevive-se à indiferença escondida no olhar de quem disfarça porque só quem repara pode agir, e foi neste sentido a evocação do tal filósofo que diz apenas na ignorância haver descanso. Quem repara inquieta-se, geme por dentro, enoja-se do lugar que ocupa no patamar do privilégio; mas esses são insuficientes para quebrar paradigmas, são menos que os indigentes que imploram reparo.
Na rua sobrevive-se ao sono – que aprende a não cair em profundidade –, se pelo chão imundo em que se dorme ou pela vigília permanente na salvaguarda dos sentidos, não sei, mas sei que se sobrevive ao sono porque sonhar não combina com barbaridade.
Os corpos dos homens, mulheres e meninos confundem-se com pedras de calçada, cabeça em lancil, rosto deitado em mijo de cão já seco, peito ao vento sem terra onde pousar. A solidão de não pertencer a um mísero lugar que seja, o desnorte de o tempo nunca ter hora, a tal sobrevivência de não caber em abraço nenhum só é capaz de trazer uma esperança, a esperança de o sol nunca mais nascer e com esse dissipar de sobrevivência, o fim de tudo o que é fome – que a fome transborda para o horizonte onde escondem as almas para que as não degolem, como se assim se pudesse salvaguardar a única coisa que se pensa ter mas se duvida que resista.
“Na rua parece que a gente incomoda quem passa”, dizem, e eu respondo que o incómodo se acomoda desleixado no sacudir a caspa dos ombros burgueses em enchumaço. Eis o que é uma sociedade numa só expressão – “o sacudir a caspa dos ombros” – é que a caspa antes de cair nos enchumaços, brota da cabeça.
Ana Sofia Brito é performer e artista de rua por opção, embora também mantenha a arte de palco; frequentou o Chapitô e estudou teatro físico na Moveo, em Barcelona. É autora do livro Em Breve, Meu Amor, que inclui crónicas publicadas também no 7MARGENS.