
Ali Está o Taras Shevchenko com Um Tiro na Cabeça: Diário da Ucrânia, de Ana França; e Ucrânia Insubmissa, de Cândida Pinto e David Araújo.
Dois diários publicados recentemente transportam-nos para as cidades e campos da Ucrânia, com o sobressalto da guerra de novo a atingir a Europa. Num caso, Ali Está o Taras Shevchenko com Um Tiro na Cabeça: Diário da Ucrânia, de Ana França, o registo é assumidamente o do diário, no título e na organização do livro; no outro, Ucrânia Insubmissa, de Cândida Pinto e David Araújo, vamos descobrindo também uma arrumação cronológica que nos traz os primeiros meses da invasão do território ucraniano pelo exército russo às ordens de Putin.
À sua maneira, uma e outra obra retiram-nos do torpor de uma guerra que se prolonga para lá de tudo o que imaginávamos, metem-nos nos pés dos repórteres, tornam-nos próximos das suas dúvidas e angústias, cúmplices dos seus medos e pequenas alegrias, companheiros de viagens e reflexões.
A invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin apanhou-nos desprevenidos, apesar de essa invasão ter começado em 2014 com a ocupação de regiões fronteiriças na Ucrânia, como a Crimeia e o Donbass. O texto de Ana França é um diário que não parece um diário, passe o paradoxo: a jornalista estava de férias em Trieste, para seguir os passos de Jan Morris, pelos cantos desta cidade num canto de Itália. As férias ficaram no início e o início do seu diário ucraniano deixa o vento das ruas de Trieste e o beliche do hostel para chegar a Lviv, já na Ucrânia, com passagem por Cracóvia, na Polónia.
Na segunda entrada deste diário, de 24 de fevereiro de 2022, está lá o número que acompanhará o leitor até ao final do livro — 79 209 refugiados. Na última entrada, de 5 de maio, pouco mais de dois meses depois, são 5 728 388, quase seis milhões.
Esta é uma reportagem longa, na qual, de repente, se intromete um quotidiano inesperado, breves notas diarísticas, gestos e vontades quase egoístas no meio de uma guerra, – mas quem é que se imagina estar no meio de uma guerra?! “Jantar: mozzarella às rodelas em tostas, com fatias de pepino por cima. O sal e a pimenta foram as primeiras compras que fizemos quando chegámos, numa estação de serviço.”
As histórias que aqui se leem já têm um ano e muito e, no entanto, podiam ter sido escritas hoje. Maria anseia que a guerra dure poucos dias – está grávida, e o pai do rapaz ainda sem nome partiu para a guerra. Teresa, enfermeira, diz que não pode deixar aquelas gentes. Por ali, em volta, as fronteiras são porosas, cheias de História e de histórias de rancor e azedume e conflitos e guerras e solidariedade e dor.
A guerra instala-se nas páginas do relato de Ana França, dos locais onde se prepara a resistência ao invasor, sem perder o fio à História para o leitor melhor percorrer o intrincado conflito que se desenrola aos olhos deste século XXI, com a dose certa de sal e pimenta de reflexões próprias sobre o jornalismo, redações no osso ou a lembrança do cozido que odeia.
Cândida Pinto traz-nos esse quotidiano de bombas, mortos calcinados, prédios esventrados ou comboios que nunca pararam, “quase um símbolo de resistência ucraniana” e o meio de transporte de líderes estrangeiros que se deslocaram à Ucrânia para manifestar o apoio ao país.
A normalidade em tempo de guerra é outra: a grande estação de Kiev tem as janelas “cruzadas por fitas adesivas para evitar a projeção de estilhaços de vidro em caso de explosão nas zonas circundantes”. A gare é também sinónimo de comoção, com músicos da Filarmónica de Kiev e do Conservatório a tocarem instrumentos para quem passa, sejam crianças curiosas ou apressados que querem fugir da guerra.
Em Ucrânia Insubmissa (como em Ali Está o Taras Shevchenko com Um Tiro na Cabeça), as páginas da guerra escrevem-se com gente dentro. Milana, 7 anos, que treme ao som das explosões, ou Nina, com 72 anos, lenço na cabeça, que não desiste de cultivar legumes e tem “muito medo”. E estas gentes habitam estas páginas nas imagens do repórter de imagem David Araújo.
Como Carlota que aparentemente não tem nada a ver com esta história e irrompe nas páginas finais deste livro. É nelas que descobrimos o jogo que David preparou para a sua filha de 13 anos, que está em Braga, a quatro mil quilómetros da Ucrânia.
Quase todos os dias, os alimentos do prato do pequeno-almoço de David transformam-se num sorriso para Carlota. Fatias de maçã, uma banana, dois bagos de uvas, copos de sumo, ou um ovo estrelado com duas gemas… As imagens que o pai envia para a filha oferecem-lhe “uma ilusão de normalidade que a poderá tranquilizar tanto como o seu próprio sorriso”. Mais de 500 dias depois do início da guerra, a normalidade continua uma ilusão, e quase já nem nos lembramos que há uma guerra na Europa a matar sorrisos, sonhos e pessoas.
Ali Está o Taras Shevchenko Com Um Tiro na Cabeça
Autora: Ana França
Ed. Tinta-da-china, 2023, 256 páginas.
Ucrânia Insubmissa
Autores: Cândida Pinto e David Araújo
Ed. Dom Quixote, 2023, 316 páginas.