
A presença da economia nos sermões de Santo António é recorrente, tratada numa “perspectiva moral”, sublinha o padre Vítor Melícias. Foto: Direitos reservados.
É necessária e urgente uma “economia ética da casa comum”, inspirada no pensamento de Santo António e na sua crítica à “economia viciosa e de pecado”. A ideia será defendida pelo padre franciscano Vítor Melícias, que intervém na manhã deste sábado no colóquio Santo António – 800 anos de vocação franciscana, que decorre no Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra.
O colóquio decorre entre as 9h00 e as 19h. Embora esteja prevista a participação presencial (limitada), a iniciativa pode ser acompanhada através dos canais vídeo da diocese de Coimbra, cujos endereços podem ser consultados, juntamente com o programa, na página da Universidade de Coimbra.
Antecipando ao 7MARGENS algumas das ideias que defenderá na sua intervenção, o padre Melícias diz que Santo António não escreveu textos sobre economia, mas tinha um pensamento económico – tema da intervenção no colóquio: a presença da economia nos seus sermões é recorrente, tratada numa “perspectiva moral”. Por isso, também, as autoridades de Pádua decretaram, três meses antes da morte do franciscano, “a libertação e futura proibição da prisão por dívidas”, que vitimava sobretudo os mais pobres, recorda.
Vítor Melícias insiste, aliás, que Santo António deu preferência, entre os temas da sua pregação, a três da área social, económica e financeira: a libertação dos presos por dívidas, a defesa da “restituição das usuras e dos bens obtidos por violência” e o apelo a que ladrões restituíssem o produto dos roubos e trabalhassem.
O mesmo olhar moral está presente no pensamento filosófico do santo português que morreu em Pádua em 1231. “Santo António não é um filósofo, é um pregador com reconhecimento público como taumaturgo, mas nos seus Sermões encontramos sempre uma leitura e interpretação do texto bíblico com um sentido simbólico e moral”, diz José Francisco Meirinhos, que também durante a manhã fará uma intervenção sobre o pensamento filosófico de Santo António.
Nos Sermões, encontramos sempre, acrescenta o professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FL/UP), elementos que pretendem levar o crente a converter-se mais ao evangelho e o pregador a anunciar as verdades cristãs sobretudo através do exemplo da sua vida.
Conhecimento rigoroso da Bíblia

Girolamo Forabosco (1605-1679), Sant’Antonio da Padova: Santo António “tinha fama de conhecer de memória o texto bíblico” e usava-o para apelar ao sentido moral e à prática de virtudes.
Ao 7MARGENS, Meirinhos diz que Santo António tinha um “conhecimento rigoroso da Bíblia” – a ponto de o Papa Gregório IX, que o proclamou santo um ano depois da sua morte, o ter chamado “arca do testamento”. “Tinha fama de conhecer de memória o texto bíblico” e usava-o sempre na perspectiva do apelo ao seu sentido moral e à prática de virtudes, sublinha ainda o investigador, um dos mais destacados em Portugal na área do pensamento antoniano.
Sobre as questões económicas, o padre Melícias diz que as ideias do santo levam a pugnar hoje por “uma economia ética de fraternidade e frugalidade”, devendo inspirar várias questões contemporâneas: os “atropelos ao desenvolvimento humano e ecológico” provocados pelo espírito consumista que leva à “desigualdade, discriminação e empobrecimento de pessoas e povos, migrações em massa, desflorestação nunca vista e agressões ao clima, à terra e à casa comum, que o actual modelo de economia tem provocado.
Apesar das “ferozes reacções do neoliberalismo político e financeiro” é preciso encontrar uma alternativa à “ilimitada protecção da propriedade e iniciativa privadas” que investem mesmo em áreas como as armas, drogas, tráfico humano e devastação da natureza, diz frei Vítor Melícias.
Santo António “foi um dos inspiradores do princípio da comum filiação divina e da consequente fraternidade”, diz ainda o frade franciscano, antigo provincial da Ordem dos Frades Menores. Para ele, acrescenta, o primeiro princípio de uso dos bens é o da propriedade universal e só depois vem o da propriedade privada. E nesse sentido, Santo António é, com outros franciscanos medievais, promotor do que hoje se designa como economia social.
Nessa linha, Vítor Melícias cita várias afirmações de Santo António que o colocam claramente contra o que hoje se caracteriza como domínio da finança: a denúncia dos “pérfidos avarentos e usurários”, que “já se apoderaram do mundo inteiro”, “engordados pelos bens temporais como se foram porcos”; os mesmos que, “quais astutas raposas a apoderarem-se da pele de burro morto”, têm os ouvidos “obturados pelas sujidades da pecúnia” e um “coração de pedra”. E que são “sanguessugas”, dos quais se diz que “a única boa ação que fazem na vida é morrer”.
Ao contrário, diz o padre Melícias, Santo António considera que produção e consumo devem pretender “sempre o bem comum” e dar prioridade aos “mais necessitados numa lógica de economia da frugalidade e da partilha”: “De um bem comum, comum deve ser o gozo”, dizia o santo, porque “as riquezas não são tuas; foram-te emprestadas; só é teu o que podes levar para a sepultura”; e a frugalidade recomenda que “ao nosso corpo, é preciso negar-lhe muitas coisas inúteis que ele deseja”, pois que não o devemos tratar “como causa da nossa vida, mas como meio indispensável para viver”.
Um lugar simbólico

O Mosteiro de Santa Cruz, que acolhe o evento, foi a casa de Santo António depois de ter estado no mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa, e antes de se tornar franciscano. Foto © Câmara Municipal de Coimbra.
No colóquio, que se insere no programa do Jubileu de Santo António e dos Mártires de Marrocos, iniciado em Janeiro de 2020, serão tratados também temas como os lugares conimbricenses de Santo António, os traços do monaquismo primitivo na sua obra e o lugar do santo nos sermões do padre António Vieira ou na moderna literatura portuguesa.
Às 17h15, está prevista a apresentação do volume Mártires de Marrocos – Nos 800 Anos do seu Martírio, que reúne as actas do colóquio realizado no início do Julbileu.
O lugar escolhido para a realização do colóquio deste sábado não é casual: foi no Mosteiro de Santa Cruz que Santo António ingressou, depois de ter estado no mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa. E ali adquiriu a sua formação cultural.
Quando, já em Itália, lhe é solicitado que faça uma pregação por saber latim, “descobrem a capacidade” que ele tinha, recorda José Meirinhos. Depois disso, é o próprio São Francisco que lhe pede que assuma a “função de ensinar a teologia aos frades”, de modo a adquirirem os conhecimentos da Escritura necessários para falar com outros e argumentar” contra os movimentos heréticos que nessa altura pululavam na Itália e sul de França.
Na sua actividade de pregador, Santo António retoma a formação e os sermões que teria escrito ainda em Santa Cruz e levado consigo para Itália, acrescenta José Meirinhos. E aí revela os dotes de pensador – que pode também ser lido nas chaves económica ou filosófica.