
“Percorri algumas dioceses portuguesas para dar a conhecer a ação apostólica do mártir Romero e promover a sua beatificação à qual seguiu a sua canonização juntamente com um outro cristão que muito admiro: S. Paulo VI”. Foto: O bispo Romero com o Papa Paulo VI. @ Arcebispado de São Salvador / Wikimedia Commons.
É este o título de um dos livros de Luis Arangurem Gonzalo, traduzido e editado pela Editorial Cáritas, em 2018, mas que ainda não chegou ao domínio publico como o merece a qualidade da obra.
A propósito da celebração, nesta quarta, 24, do dia litúrgico de S. Romero – escolhido por ser a data da sua morte como é costume acontecer a todos os cristãos e cristãs que são considerados santos, pela Igreja – fui revisitar o livro acima referido. Assaltou-me, de novo, o desalento por um bom punhado de portugueses, sobretudo católicos, não conhecer o pensamento do autor sobre os princípios éticos e educativos orientadores da reta final do magistério episcopal do bispo mártir salvadorenho.
Já li alguns livros e textos sobre Óscar Romero que me ajudaram a conhecer esta figura marcante da Igreja Católica, que se tornou como uma referência para mim, de modelo cristão a seguir. Para esta maior aproximação teve grande influência o meu relacionamento amigo com um dos seus principais discípulos, o hoje cardeal Gregorio Rosa Chávez. Há poucos anos, acompanhei o então bispo Gregorio, com o patrocínio dos padres da Consolata, percorrendo algumas dioceses portuguesas para dar a conhecer a ação apostólica do mártir Romero e promover a sua beatificação à qual seguiu a sua canonização juntamente com um outro cristão que muito admiro: S. Paulo VI.
Por sinal, e decerto por motivos diferentes, a instância católica encarregada destes assuntos, tardou em reconhecer a santidade de cada um deles, apesar de muitos cristãos católicos já há muito, os considerarem como tal. Tenho dúvidas que Romero tivesse sido elevado aos altares se o cardeal Bergoglio não tivesse sido escolhido para sucessor de Pedro.
Todos os biógrafos são unânimes em reconhecer que esta dimensão pastoral mais profética, assente num testemunho radical cristão, nem sempre fez parte da orientação que, como sacerdote e bispo, Óscar Romero deu ao desempenho do seu ministério sacerdotal. Foi obrigado – como todo o cristão que procura a Verdade – a percorrer um caminho de conversão. Este processo teve não o seu epílogo, por se tratar de um processo contínuo, mas a transformação fundamental no dia em que lhe assassinaram um dos seus padres por este defender os mais injustiçados da diocese de El Salvador.
Com base em alguns destes traços, o autor já referido faz o perfil do bispo que passou a colocar a opção preferencial pelos pobres no centro das suas preocupações. É de realçar também o deixar de se servir de sentimentalismos como “um escoadouro da injustiça estrutural que permite que nos esquivemos às nossas responsabilidades”[1]. Porém, afinou a sua sensibilidade que o obrigava a ter os olhos e ouvidos bem abertos para a realidade, mesmo que isso viesse a criar-lhe tensões. Assim, preferiu não correr em busca de lentes que desfocassem e de tampões que diminuíssem a intensidade do que se escutava[2].
Romero passou a viver uma espiritualidade encarnada e libertadora, marcada pela distinção ética entre o que é um valor absoluto e um relativo. É esta distinção que o leva a colocar nos seus princípios, como bispo, a valorização da “ética pela justiça”, apesar de saber os riscos que esta opção acarretava. Passou a compreender que só uma pastoral transformadora – e não de manutenção de meras tradições – pode ser facilitadora da concretização do Reino de Deus que não existe só para além deste tempo, mas que nos compete fazer que, desde já, o habitemos, mesmo que isso traga sofrimento por ser contrário às realidades deste mundo.
Quem se dispõe a construir o reino da Justiça e do Amor, tem de se abrir a possíveis tensões, sempre orientadas por constante discernimento a partir da Sagrada Escritura, do Pensamento Social Cristão, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos sinais que Deus nos vai enviando. Esta sadia tensão Romero assemelha-a às dores de parto, ao dizer que são “tempos difíceis, como a hora difícil da mulher que vai dar à luz. Algo de novo nasce e algo perece. É sempre assim na história. Quem quiser fazer da história algo de estático, que pode ser medido com os seus quadros inabaláveis, não tem um conceito da História (18/11/1979)”[3].
Outra força motriz do seu apostolado foi a procura da verdade, numa abertura ao diálogo com todos, sabendo que esta busca incessante também gera sofrimento. A confirmar isso, Jon Sobrino “sintetiza a autenticidade de Romero com uma expressão que tantos camponeses fizeram sua naqueles anos: ‘Monsenhor disse a verdade, defendeu-nos a nós, e, por isso, o mataram’”[4].
Estamos a aproximar-nos da celebração dos acontecimentos libertadores e redentores protagonizados pelo fundamental Mestre de S. Romero: Jesus Cristo. Quem conhece a experiência profética e fizer memória, não apenas como acontecimento histórico, mas como consequência decorrente de quem luta pela justiça, com um amor prenhe de compaixão e de misericórdia, perceberá que o que aconteceu, há pouco mais de dois mil anos, em Jerusalém, tem-se repetido ao longo da História com os que seguem, até às últimas consequências, os passos de Jesus.
S. Romero tinha incondicional confiança no seu Deus e na Ressurreição de Cristo. Mesmo que o assassinassem barbaramente, como aconteceu a 24 de março de 1980, tendo o seu patíbulo sido o altar onde celebrava o sacramento da caridade que é a eucaristia. Por isso, tinha consciência de que isso aconteceria, mas que lhe estaria garantida uma nova vida.
Segundo Luis Gonzalo “Romero vive! Se o ser humano só cabe na utopia – como escreveu Sábato – Romero deixou-nos um vazio a seu lado onde se pode caminhar juntamente com ele. O ser humano cabe na utopia da justiça social e na do cuidado a todos os níveis. De ambas participa Romero. Em ambas sai em defesa da dignidade da pessoa e dos bens que são comuns.”[5]
Tudo o que Romero conseguiu só foi possível porque trilhou os caminhos deste mundo, sempre com o Ressuscitado. Só assim se pode alimentar a Fé, sustentar a Esperança e viver no Amor.
Eugénio Fonseca é presidente da Confederação Portuguesa do Voluntariado
Notas
[1] cf. Luis Arangurem GONZALO, São Romero dos Direitos Humanos – Lições éticas, desafio educativo, Editorial Cáritas, Lisboa 2018, 73.
[2] Cfr. Ibidem, 74.
[3] Cf. Ibidem, 87.
[4] Cf. Ibidem, 124-125.
[5] Cf. Ibidem, 156.