
Vista geral do campo de refugiados sarauís de Smara, daira (bairro) de Mahbes, em Tindouf (sudoeste da Argélia). Foto © Tomás Sopas Bandeira.
A independência de Timor-Leste faz sonhar todo um povo no deserto, desde há muito. O Sara Ocidental é — como era a pequena ilha na ponta do imenso arquipélago indonésio, no Sudeste asiático — um território não-autónomo, no quadro das Nações Unidas. Esta língua de areia encravada entre o oceano Atlântico e o deserto do Sara foi ocupada por Marrocos em 1975 (na altura, com a Mauritânia a ocupar também uma parte do território, que abandonaria mais tarde, para o movimento independentista sariano, a Frente Polisário), depois da antiga potência colonial (Espanha) o ter abandonado.
É tudo muito igual a Timor: sem que Portugal esboçasse particular reação, a Indonésia ocupou o território, que tinha proclamado a sua independência, declarando-a como a sua “27ª província”, no final de 1975. Mas a sorte de um e outro território é bem diferente: a Indonésia permitiu a realização de um referendo à autodeterminação de Timor-Leste, em 1999, que se traduziu numa esmagadora vitória do “sim” à independência, enquanto que o Sara Ocidental aguarda que Marrocos cumpra um acordo de 1991, que previa idêntico processo.
Previsto para 1992, o plebiscito não se realizou por as duas partes — o governo de Rabat e a Frente Polisário — não chegarem a acordo sobre quem tinha direito a votar: Marrocos quer que seja apenas a população residente no Sara Ocidental, mas a Frente Polisário só aceita que sejam os habitantes contados no censo de 1974, evitando assim o voto de marroquinos emigrados para a região ocupada e proporcionando o direito de voto de todos os sarianos (ou sarauís) que vivem refugiados na Argélia, nos acampamentos da Frente Polisário, na região de Tindouf.
Sánchez: Espanha reconhece autonomia

Desde 1992 que Marrocos tem protelado o tema, mantendo a ocupação de facto do território, sem que as Nações Unidas tenham conseguido desatar o nó górdio. E agora tudo terá ficado mais complicado. Marrocos anunciou que o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, informou o rei Mohamed VI de que a Espanha daria o seu apoio à proposta marroquina de autonomia para o Sara Ocidental (que Rabat chama de Sara marroquino). Na carta tornada pública pelo Gabinete Real de Mohamed VI, Sánchez sublinhou que “reconhece a importância da questão do Sara para Marrocos” e, por isso, “Espanha considera a iniciativa de autonomia marroquina, apresentada em 2007”. A iniciativa de Sánchez levantou um vendaval de críticas em Espanha, com a óbvia comparação com a invasão da Ucrânia.
Segundo a carta, o presidente do Governo de Espanha destacou “os esforços sérios e credíveis de Marrocos no âmbito das Nações Unidas para encontrar uma solução mutuamente aceitável”, e valorizou o facto de que “os dois países estão indissociavelmente ligados pelo afeto, história, geografia, interesses e uma amizade compartilhada”.
A Indonésia usava de idênticos argumentos até à aceitação do referendo. Em Espanha, a alteração de posição assumida pelo primeiro-ministro levou a muitos protestos políticos, também nas ruas. No último sábado, dia 26, cerca de sete mil pessoas de toda a Espanha concentraram-se em Madrid num “ato de força do movimento solidário” e de demonstração de que “o povo espanhol não abandona os sarauís”, como descreveu David Bollero, colaborador do jornal Público, de Espanha.
No Congresso, perante os deputados, o titular da pasta dos Negócios Estrangeiros, José Manuel Albares, ainda de acordo com Bollero, “tratou de justificar a sua alteração de posição apoiando agora Marrocos na necessidade de passar de mero espectador a ator”. Para o jornalista espanhol, “aqui radica o seu maior erro: o povo espanhol leva mais de quatro décadas como ator ativo neste conflito, defendendo o cumprimento da legalidade internacional e das resoluções da ONU, pedindo o referendo à autodeterminação para o povo sariano que estas determinaram”.
Foram os governos de Madrid, do “PP e do PSOE”, acusa David Bollero, que falharam, que “nunca estiveram à altura, nem da cidadania espanhola, nem dos seus programas eleitorais, nem do Direito Internacional”.
Independentemente do terramoto político interno (que pode, no entanto, levar Espanha a recuar neste apoio a Marrocos), para já, a luta pela autodeterminação do povo do Sara Ocidental sai enfraquecida, apesar de a proclamação da República Árabe Sarauí Democrática, com o apoio argelino, ser hoje reconhecida por 71 estados e já ter sido admitida na Organização de Unidade Africana (OUA).
No entanto, as consequências do gesto de Pedro Sánchez podem resumir-se a uma dimensão política interna e bilateral, sem tradução prática nos diferentes fóruns internacionais, sinaliza María López Belloso, investigadora associada da Universidade de Deusto (Bilbau, Espanha).
Para além de lembrar “a incoerência de defender o Direito Internacional e a soberania nacional na Ucrânia”, com esta tomada de posição, Belloso regista que “apesar da interrelação entre política e Direito Internacional, este pronunciamento não altera a natureza jurídica do conflito ou a sua solução”.
Legítimo representante sariano é a Frente Polisário

Vale a pena transcrever uma passagem mais longa do texto de María López Belloso para se perceber o que está em causa. “O território do Sara Ocidental é um Território Não Autónomo e, portanto, de acordo com as resoluções das Nações Unidas [Resolução 2625 (XXV) da Assembleia Geral das Nações Unidas, aprovada em 24 de outubro de 1970], a sua natureza só mudará quando “o povo da colónia ou do Território Não Autónomo tenha exercido o seu direito à autodeterminação de acordo com a Carta e, em particular, com seus propósitos e princípios” (p. 174). Esta natureza foi reiterada pelo consultor jurídico das Nações Unidas, Hans Corell (S/2002/161), por exemplo, ou nos vários acórdãos dos tribunais europeus sobre a legalidade da exploração dos recursos naturais do território. Esta natureza do território também define o status das partes, e especificamente a natureza da presença marroquina no território como uma ocupação (ver resoluções Res. UNSC 377/1975 e Res. UNGA 34/37 de 1979). Estas mesmas sentenças também deixam claro que o legítimo representante do povo sarauí é a Frente Polisário (sentença do Tribunal Geral da União Europeia, de 29 de setembro de 2021) e que, portanto, qualquer decisão que afete o bem-estar do povo sarauí, a gestão dos seus recursos naturais ou para determinar o seu futuro, deve passar pela consulta do seu legítimo representante.”
Em Portugal, a Associação de Amizade Portugal-Sahara Ocidental, numa carta aberta à embaixadora espanhola em Lisboa, sublinhou que “nenhum governo pode decidir o destino de outro povo, só o povo sarauí poderá pronunciar-se, através de um referendo, sobre o seu futuro”.
Do lado sariano, a Frente Polisário condenou esta terça-feira, 29, de forma veemente a mudança de Madrid, considerando “a posição recentemente expressa pelo presidente do Governo espanhol, Pedro Sánchez, uma intransigência na vergonhosa traição da vontade do povo sarauí”.
Em novembro de 2020, houve confrontos nas areias do Sara Ocidental. Mas, para o “Timor do Deserto“, o sonho de replicar o processo de independência da antiga colónia portuguesa no Sudeste asiático, passará mais pela via diplomática do que por esparsos confrontos armados.