
“Esta pandemia ajudar-nos-á a descobrir facetas desconhecidas da nossa identidade, ou a re-definir o que nos identifica.” Foto © Maria do Carmo Marques Lito
Numa rua com uma simples brisa, não há motivo para não mostrar a minha cara. Os aerossóis são dispersos por uma simples brisa. Só nos espaços mais fechados ou pouco ventilados é que corremos o risco de nos infectarmos. Se uma família dentro de casa não usa máscara, por que razão a usa dentro do carro? Será pelo frio, e a máscara sempre aquece alguma coisa? Antes, se entrasse num banco com uma máscara era assaltante. E agora? Enfim, tenho saudades das caras, e penso que esta pandemia ajudar-nos-á a descobrir facetas desconhecidas da nossa identidade, ou a re-definir o que nos identifica.
No teatro, a máscara serve para esconder uma identidade, de modo a que o actor possa assumir uma identidade diferente. O formato dessas máscaras serve, também, para dar uma carga emocional ao tipo de identidade. Por exemplo, no teatro japonês, a máscara expressa a idade e o sexo da personagem, e se é de natureza humana ou divina. Assim, apesar das máscaras tornarem a nossa face incompleta, não impedem a nossa criatividade de as usar de um modo expressivo. A experiência mais imediata será a de que, com as máscaras, são os olhos que sorriem.

Teatro em Cochim, Índia: as máscaras servem, “também, para dar uma carga emocional ao tipo de identidade”. Foto © Miguel Veiga.
Quando a Apple introduziu o FaceID para desbloquear o telemóvel, usou algoritmos de reconhecimento facial, suficientemente adaptáveis para considerar mudanças no rosto como o crescimento da barba, uma cor do cabelo diferente, mais ou menos maquilhagem, mas as máscaras criaram uma crise de identidade nos softwares. Embora uma boa parte do algoritmo de reconhecimento esteja em torno dos olhos, a validação implica a totalidade da face. Não é de admirar.
Eu próprio fiz essa experiência quando comecei as aulas com alunos do primeiro ano que usavam máscara, pelas razões de segurança que conhecemos, e não conseguia imaginar o seu rosto até que as tirassem, momentaneamente, para os conhecer. Por muito reconhecimento da nossa identidade que possamos fazer com tecnologia, por exemplo, através da íris dos nossos olhos, nada se compara à totalidade do nosso rosto.
Aliás, se pegarmos numa foto nossa, dividirmos a metade, copiando e rodando para obter um rosto perfeitamente simétrico, encontraremos uma pessoa parecida connosco, mas não nos reconhecemos plenamente. A assimetria das nossas faces, e todos os pequenos detalhes (que antes talvez considerássemos defeitos), na verdade, são o que fazem do nosso rosto, um rosto único.
Claus-Christian Carbon, da Universidade de Bamberg (Alemanha), estudou o efeito das máscaras na leitura das nossas emoções. O teste confrontava os participantes com a imagem de rostos com máscara a expressarem seis emoções diferentes: zangado, enojado, receoso, feliz, neutro e triste. Enquanto os rostos neutros e receosos se caracterizam muito pela expressão dos olhos e os participantes acertavam mais, os restantes eram confundidos como neutros, ou no caso do rosto daquele que está enojado era confundido com um rosto zangado. Ou seja, se muitos de nós temos dificuldade em ler o rosto das pessoas, não é de estranhar, pois, que a necessidade do uso da máscara complique as nossas interacções sociais. Diz o ditado que “quem vê caras, não vê corações”, mas na era pós-covid19, essa é uma realidade do nosso quotidiano.
As expressões faciais não são a única fonte de informação dos estados emocionais de uma pessoa, por termos, também, a linguagem corporal e a postura de cada um. Também a voz nos indica algo sobre aquilo que alguém sente. Mas a comunicação verbal directa é a fonte mais clara daquilo que passa pela cabeça de uma pessoa. Por isso, as máscaras induziram-nos a um inesperado passo de evolução social: expandir o repertório de gestos e expressões corporais como desenvolvimento da nossa capacidade de expressar emoções. Ou seja, a máscara que começou como um obstáculo pode tornar-se um trampolim de renovação interior e exterior.

“A máscara que começou como um obstáculo pode tornar-se um trampolim de renovação interior e exterior.” Foto © Miguel Veiga.
Todos estamos cientes de ser mais fácil agarrarmo-nos aos que não conseguem usar estas dificuldades como motivação de crescimento pessoal e social, e propagar as ideias perigosas de que tudo está bem se não usarmos máscaras, quando não está. Estou ciente de que, ao mostrar o meu rosto na rua, uso os conhecimentos que tenho de transporte de aerossóis para assegurar que não sou infectado, ou infecto ninguém, mas nem todos possuem esses conhecimentos. Logo, em certas (bastantes) situações uso a máscara como um acto civil e solidário, mesmo sabendo ser desnecessário. Mas não consigo esconder as saudades que tenho de ver caras.
Creio é que ceder à saudade com sabedoria, em tempo de pandemia, é abraçar a criatividade de falar aos outros com mais partes do meu corpo que não somente o rosto. Ser explícito nas palavras e no olhar. E acreditar que saberemos aprender a comunicar mais e melhor no futuro, já que esperar que os outros leiam o que sinto somente olhando para o meu rosto é coisa do passado.
Miguel Panão é professor no Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade de Coimbra; para acompanhar o que escreve pode subscrever a Newsletter Escritos.