
Pintado na parede. Unidade de cuidados neonatais. Hospital Escola de Tegucigalpa. © Luis Castanheira Pinto
Jornada extensa. Temporã. Três da manhã. Viagem longa. Escalas. Fuso horário. Reuniões à chegada. Demasiadas. Oito da noite. O cansaço a impor-se. A fome a acusar negligência. Ingredientes de sobra para encerrar o dia. Pausar. Parar mesmo. No entanto insuficientes para ignorar os relatos que começáramos a escutar.
Na sede da ACNUR em Tegucigalpa (Honduras) não faltam estórias das quais comungar. Retratos de horror, umas. Fragmentos de humanidade profunda, outras. Ou talvez simplesmente o todo de uma história única que partilhamos.
Nas Honduras entraram na primeira metade do ano, “irregularmente”, 184.486 pessoas. Dados oficiais. Os que se conhecem. Dos outros nada sabemos. Num só mês, o número record de 48.953 refugiados e migrantes “em trânsito”. Um em cada três pede proteção internacional por razões de violência ou perseguição no país de origem. Um terço dos migrantes em trânsito nas Honduras são mulheres. Um quinto são crianças. 3% das pessoas entrevistadas pela ACNUR reportaram viajar com uma mulher grávida ou em amamentação.
A estória de Mercedes faz parte dos relatos. O nome é fictício, pois claro. Pouco interessa. Jovem. Grávida de meses. Muitos. Ainda assim menos do que os que traz de caminho feito. Milhares de quilómetros nas solas. Parte deles nos pés. Orientação sul-norte. Paragem na fronteira. O dilema dilacerante. Opção A. Continuar com o grupo já feito comunidade. Arriscar o parto em nenhures. Opção B. Permanecer em solo Hondurenho. Dar à luz em segurança (a possível). E perder o grupo para o resto do caminho. Ficar para sempre não é opção. A imagem de um filho perdido às mãos da tirania na estrada também não. Resta a dor. Profunda. Indizível. Solitária. Aterradora.
Resta também a esperança – a desesperança talvez – de uma escolha que se faça por si. Que não estilhace ainda mais o ventre já por demais dorido de uma mãe sem destino que se conheça.
Ouvem-se já, ao longe, as perguntas dos ignorantes – que somos todos. Que mulher arrisca engravidar em migração? Ou migrar se já grávida? Ou arriscar a vida de dois numa empresa sem destino? A ignorância é amiga do medo. O medo é mau companheiro. Seduz-nos para juízos precipitados. Mais das vezes errados. Dos movimentos de migração conhecemos pouco. A maioria conhece nada. Mercedes conhece muito. Conhece o medo também. O da incerteza. O da violência. Da violação. Conhece os maus. E os bons. E todos os demais. O corpo de Mercedes é sábio. Não precisa de letras nem números. Está lá a ciência do humano. Laboratório de intuições. Sensibilidades. Presságios. Marcas. Cicatrizes. Umas na pele. Outras na alma. Memórias que em rasgos de dor abraçam a morte, em lugar de a afugentarem. Qual opioide de uma vida que se lhe ofereceu desgraçada.
O corpo de Mercedes aprendeu a sobreviver. A discernir. O essencial do resto. O bom do mau. O toque ignóbil que procura o inferno. Ou aquele da mão que cuida. Aconchega. Sabedoria que não se diz. Que corre no cordão de mãe para mãe. Feminina pois claro. Divina.
Epílogo. A criança nasceu. Bem. Mercedes continuou o seu caminho. Reencontrou o grupo mais tarde. A ajuda de equipas no terreno traduziu a fé de Mercedes naquilo por que mais rezou.
Luís Castanheira Pinto é licenciado em economia, tem-se dedicado às questões do conhecimento, aprendizagem e desenvolvimento de competências e trabalha no Banco Mundial, em Washington DC (Estados Unidos). É casado e pai de três filhos. Viveu anteriormente no Porto, Lisboa, Bruxelas e Copenhaga.