
“O Comité de Direitos Humanos das Nações Unidas expressou preocupação com a persistência da violência doméstica e com os baixos níveis de denúncias, acusações e condenações relativas a violência de género em Portugal.” Foto: direitos reservados
Ler jornais é saber mais. Vamos, então, a alguma leitura.
Esta notícia, por exemplo:
“Relação diz que pontapés e palmadas não são violência doméstica” (JN, 28/5/2021).
Desenvolvendo:
“O Tribunal da Relação de Coimbra (TRC) considerou que atos como pontapés, palmadas e puxões de cabelo não constituem crimes de violência doméstica, de acordo com o ‘Jornal de Notícias’ (JN).
O caso diz respeito a um homem que foi condenado, em primeira instância, a ano e meio de prisão e ao pagamento de uma indemnização de mil euros, por ter sido o autor destes atos de violência para com a sua companheira.
No entanto, após o recurso, e com um voto vencido de um dos três juízes desembargadores, o TRC considerou que o caso revelava “pouca gravidade, inserindo-se na pequena criminalidade” e não podia ser considerado um crime de violência doméstica, segundo o acórdão a que o jornal teve acesso.
Curioso é que o próprio tribunal entendeu que “o arguido agiu com o propósito de maltratar física e psiquicamente a companheira, tal como resulta que a deixou, na altura, em sobressalto e em situação de instabilidade”. Contudo, acrescenta o acórdão, “os atos praticados pelo arguido não são suscetíveis de configurar a ocorrência de um crime de violência doméstica, porque não assumem a tal intensa crueldade, insensibilidade, desprezo, aviltamento da dignidade humana necessárias ao crime”.
Eu não sou jurista e, portanto, deve haver aqui qualquer coisa que me escapa. Mas se a justiça dos juristas não consegue ser compreendida pelas pessoas, perdendo-se em justificações formais ou processuais que acabam por absolver quem faz malfeitorias como esta, há algo que merece reflexão, debate e… mudança.
(E também gostava que alguém me explicasse por que tabelas é que se mede a “crueldade” de uma qualquer agressão, física ou psicológica, a uma mulher… E se a tabela dos juízes é uma tabela especial.)
Continuemos a leitura.
Esta outra notícia, por exemplo:
“Juíza absolve homem que arrastou mulher pelo pescoço na rua” (JN, 21/5/2021).
Desenvolvendo:
“Um homem, de 37 anos, foi absolvido no tribunal de Paredes, no distrito do Porto, do crime de violência doméstica. O Jornal de Notícias (JN), que avança a notícia (…), refere que o arguido foi apanhado pela Guarda Nacional Republicana (GNR) a arrastar a companheira, pelo pescoço, na rua em direção a uma viatura.
A juíza Isabel Pereira Neto considerou a agressão como provada. Contudo, indicou que o sucedido não teve “crueldade, insensibilidade e desprezo” para que constituísse um crime de violência doméstica. Segundo a sentença, entendeu-se “que a conduta do arguido não integra o conceito de maus-tratos previsto no artigo 152.º do Código Penal”.
Há mais, mas estas chegam, não chegam? Aliás, bastava uma só, que já chegava e sobrava. Mas elas são mais que muitas. Quem queira aprofundar o tema tem um interessante estudo, elaborado em 2016, sob os auspícios da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género intitulado Violência Doméstica, Estudo Avaliativo das Decisões Judiciais.
Resumo brevíssimo: “Investigadores estudaram 500 sentenças e concluíram que os magistrados são ‘tolerantes’ à violência doméstica, que muitas vezes desvalorizam.” Pois é. Não é de hoje. Nem de ontem. Mas parece não haver meio de mudar a coisa…
A propósito da espantosa decisão do Tribunal de Paredes, a Amnistia Internacional Portugal veio agora recordar que “em abril de 2020, o Comité de Direitos Humanos das Nações Unidas expressou preocupação com a persistência da violência doméstica e com os baixos níveis de denúncias, acusações e condenações relativas a violência de género em Portugal.” “(…) Várias organizações da sociedade civil portuguesa têm também vindo a denunciar que os níveis persistentemente baixos de condenações por violência doméstica poderão contribuir para uma sensação de impunidade dos agressores e de desproteção das vítimas, além de as desencorajar a denunciar abusos”, acrescenta (citado do JN, 27/5/2021).
Depois disto, não há muito mais a dizer, pois não? Só há muito a fazer. Mas… por onde começar?