
“Um dever de justiça, que ‘reclama uma divisão de tarefas o mais igualitária possível’.” Ilustração: Violência sobre mulheres © Hermes Mangialardo.
0. Pontapé de partida
Um gajo mata-se a trabalhar para a mulher ficar em casa e no caso de se divorciar vai ter de lhe pagar um ordenado mensal durante os anos que esteve casado… fogeeeeee a mim ninguém me apanha casado! (retirado “da Net”)
1. A notícia
O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) confirmou a condenação de um homem ao pagamento de mais de 60 mil euros à ex-companheira pelo trabalho doméstico que esta desenvolveu ao longo de quase 30 anos de união de facto. (Público, 24-2-2021)
2. Os argumentos
No acórdão, datado de 14 de Janeiro (…), o STJ refere que o exercício da actividade doméstica exclusivamente ou essencialmente por um dos membros da união de facto, sem contrapartida, “resulta num verdadeiro empobrecimento deste e a correspectiva libertação do outro membro da realização dessas tarefas”.
O caso (que resultou da queixa de uma mulher e do respectivo pedido de indemnização) tinha sido julgado em primeira instância e considerado improcedente. Nesta instância, o juiz achara que “não sendo o trabalho despendido no lar judicialmente exigível no âmbito da união de facto, a sua prestação como contribuição para a economia comum configura-se como cumprimento espontâneo de obrigação natural”. Isso mesmo: “cumprimento espontâneo”, “obrigação natural”. Obrigação. Natural. Na-tu-ral.
Mas o Supremo não achou assim. Bem pelo contrário. Conforme escreveu no acórdão, “em situações de evidente desequilíbrio não é possível considerar que a prestação do trabalho doméstico e os cuidados, acompanhamento e educação dos filhos correspondem, respectivamente, a uma obrigação natural e ao cumprimento de um dever”. Qual dever? Um dever de justiça, que “reclama uma divisão de tarefas o mais igualitária possível”. Além disso, “o trabalho doméstico, embora continue a ser estranhamente invisível para muitos, tem obviamente um valor económico e traduz-se num enriquecimento enquanto poupança de despesas”. (Retirado do Público, 24-2-2021).
3. O debate “na Net” (no caso, uma caixa de comentários)
Comentário de A: Então o homem sustenta a mulher por 30 anos, paga as contas da casa, comida e tudo mais, mas tem que pagar mais 60000€, como é que um Português normal paga isto, OK eu percebo que ela trabalhou mas foi compensada com o que eu referi à (sic) pouco, é por esta que muita (sic) pessoal jovem não se considera casar (eu incluído) não quando só temos a perder, agora podem me chamar machista
Réplica de B a A: Ó meu otário, sustentou-a ele tanto quanto ela o sustentou a ele não? Ou ele teria condições de ganhar o que ganhou para pagar as contas se não tivesse uma mulher a tratar das lides domésticas? Já tomaste conta de uma casa sozinho e de filhos enquanto trabalhas? Certamente que não. Aprende a dar valor às coisas. É que tu nem machista és. É parca esperteza mesmo! Fazes a soma ignorando uma das parcelas e metes do lado de lá do sinal de igual o valor que te dá jeito. Meninos como tu são uma vergonha para nós homens. Vai mas é fazer uma panela de sopa!
Tréplica de A a B: Primeiro, baixa a bola não te conheço de lado nenhum para me insultares seu lixo, segundo ao contrário do que tu pensas as mulheres não vão gostar mais de ti por essa visão femeninista (sic), esquece lá isso, por último, eu já fiz trabalho doméstico num período da minha vida, sinceramente não é nada de especial comparado com o meu trabalho atual, em que já tive de trabalhar com um dedo partido, nem me deram tempo para recuperar, o que te garante que o trabalho dela é mais pesado? Se achas que o trabalho doméstico é dos mais difíceis estás a viver num mundo à parte, é como tu disseste no primeiro ponto, ele sustentou tanto a ela como o contrário, fair enough, então porque que o gajo ainda tem que pagar mais 60000€? Enfim, há gente que tem a mente tão aberta que os miolos até lhe caiem (sic).
4. Outros debates
Do Jornal de Notícias de 25-2-2021:
(…) A decisão já levou a Associação Portuguesa das Mulheres Juristas (APMJ) a felicitar a “inovação no ordenamento jurídico português” naquela matéria. Apesar de não criar precedente, nem vincular os tribunais, serve, conforme explicou Joana Pinto Coelho, como “orientação jurisprudencial”.
(…) Joana Pinto Coelho não olha ao detalhe para o valor monetário apurado. Mas lembra: “Uma vitória amarga. Não há caminhos de mudança que não sejam feitos com muito custo e muita disrupção, e tudo isto são conquistas”, vinca.
(…) Para Joana Pinto Coelho, o que é mesmo importante destacar nesta decisão é a de que, para lá da valorização do trabalho doméstico, “o acórdão fala especificamente nos cuidados no lar e para com as crianças, deixando claro que não é uma obrigação natural das mulheres”.
Do jornal O Minho de 25-2-2021:
A Associação das Juízas Portuguesas esclareceu hoje que a condenação pelo Supremo Tribunal de um homem a pagar 60 mil euros à ex-companheira incide “na restituição do montante em que se quantificou a contribuição” prestada pelo trabalho doméstico.
“Impõe-se esclarecer que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) não condena na restituição do valor do serviço doméstico prestado durante o período de união de facto, mas sim no montante que se entendeu que esse serviço contribuiu para aquisição de património pelo réu, que é e sempre foi exclusivamente dele”, precisa a AJP, presidida pela juíza Paula Ferreira Pinto.
4. Conclusão
Sobre o caso, apetece dizer que fala por si, em termos reais e em termos simbólicos.
Sobre os debates, apetece dizer que há debates e debates… Registe-se que quem escreve (as mais das vezes anonimamente) nas caixas de comentários é gente que até lê jornais. De outro modo não chegava às caixas de comentários. Ou seja: é gente minimamente informada, gente que acompanha os assuntos da atualidade, que se interessa, que pensa, que gosta de opinar. Não é propriamente gente que está com os amigos à mesa do café e manda umas bocas mais ou menos rascas sobre o que quer que seja.
Ou é?…