Entrevista

Selma Uamusse: “A minha fé foi-se costurando com a música”

| 5 Mar 2023

selma uamusse, foto luis s. tavares 1

A cantora Selma Uamusse nasceu em Moçambique em 1981 e veio para Portugal aos sete anos. Foto © Luís S. Tavares.

 

Uma coisa é certa: Selma Uamusse sempre quis mudar o mundo, ou pelo menos um bocadinho dele. Mas pensava que iria fazê-lo sendo engenheira. Estudou Engenharia do Território no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, onde chegou a trabalhar, e tinha o sonho de regressar ao seu país, Moçambique, de onde veio com apenas sete anos, para ajudar a reconstruí-lo. Depois, descobriu que Deus, que ela só conheceu melhor aos 12 anos quando pediu aos pais para ir à igreja e ser batizada, tinha outros planos para si. Nesta entrevista, feita a escassos metros da Igreja da Praça de Londres, precisamente onde Selma se apaixonou pela figura de Jesus pela primeira vez (haveria uma segunda, como mais à frente se perceberá), contou-nos a história dessa descoberta. Aos 41 anos, dez anos depois de se ter lançado como cantora a solo, e a preparar-se para lançar o seu terceiro álbum de originais, Selma Uamusse canta aquilo em que acredita e não tem dúvidas: essa é a melhor forma de cumprir a sua missão.

 

7MARGENS – Ser cantora não fazia parte dos teus planos… Como é que a música assumiu um papel tão importante na tua vida?

SELMA UAMUSSE -– Eu acho que a música sempre fez parte da cultura da nossa família, e não estou a falar da cultura africana… O meu pai era engenheiro e a minha mãe historiadora, mas eles tiveram um background muito ligado à música: a minha mãe trabalhava na rádio, o meu pai fazia parte de um grupo de canto e dança, declamava poesia, e eles estavam muito envolvidos com o meio artístico. Nós não tínhamos televisão, ouvíamos muita rádio, o meu pai e a minha mãe ouviam imensa música… Então, eu cresci num meio muito permeável à música, mas acima de tudo num meio em que a música foi sempre vista não apenas como entretenimento, mas como objeto artístico, e era algo que fazia parte do nosso dia-a-dia.

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Selma Uamusse com a mãe, uma das pessoas de quem herdou o gosto e respeito pela música enquanto objeto artístico. Foto: Direitos reservados.

 

7M – Já nessa altura gostavas de cantar?

Gostava. Os meus pais aperceberam-se muito cedo que eu tinha uma inclinação para a música, porque quando eu tinha três anos eles inscreveram-me na escola de música da Rádio de Moçambique. Eu tinha muita facilidade em decorar letras, gostava muito de cantar e notava-se que havia ali uma particular alegria em mim quando cantava. Logo assim muito pequenina comecei a ser solista. Mas, na verdade, para mim cantar era só uma coisa que fazia parte do nosso dia-a-dia. Depois, quando viemos para Portugal, cantava muito na escola, e lembro-me de que, quando a Sara Tavares ganhou o Chuva de Estrelas, as minhas amigas diziam: “Tu também tens de concorrer!” E eu respondia: “Que disparate! Eu não canto nada assim…” Para mim, cantar era uma capacidade como andar de bicicleta ou nadar, e eu não achava que o saber cantar implicasse ter de fazer alguma coisa com isso.

 

7M – O que te fez mudar de ideias?

A música acabou por entrar mais a sério na minha vida de uma forma inesperada. Foi em 1999, na festa de aniversário de uma prima. Estava lá um maestro, o Carlos Ançã, e no final ele quis fazer uma oração pela minha prima. Isso primeiro deu origem a risota, mas depois achei aquilo super-bonito, porque ele quis fazer uma oração cantada, e eu fiquei muito tocada com o momento, e comecei a cantar também, de uma forma muito natural.

No final, ele disse-me que eu cantava muito bem, e que estava a formar um grupo de gospel, e perguntou-se se eu não queria ir aos ensaios. Eu fiquei surpreendida e expliquei que não estava ligada a nenhuma igreja, mas ele disse que não fazia mal, que era um grupo cristão, mas que todas as pessoas eram bem-vindas. Fiquei sem saber se aceitava ou não, mas lá comecei a ir aos ensaios do gospel. No início, estranhei um bocado, porque os ensaios tinham um primeiro tempo de oração e para mim aquilo era muito estranho. Primeiro estranhei, depois entranhei, e depois já não conseguia viver sem aquilo. Até hoje, continuo a cantar gospel, agora com um dos grupos que entretanto ajudei a criar, os Gospel Collective.

Revi-me completamente na vida de Jesus, e pensei: “Quem é este homem inspirador de que ninguém me tinha falado?”

Quando crescemos num meio em que não se fala sobre nada disso, Jesus pode ser totalmente desconhecido. E eu comecei a ficar superapaixonada pela Palavra, devorava o Novo Testamento, adorava o Evangelho de Lucas, achava que era tudo lindo e incrível e espetacular, uma maravilha…

7M – Foi por causa do gospel que te aproximaste da Igreja?

A minha família, como quase todas as famílias que assimilaram a cultura portuguesa, tinha um background católico, mas os meus pais são filhos da revolução, portanto tinham um perfil em que a religião estava de um lado e a vida deles no outro… Eles não se casaram pela Igreja, não me batizaram, não me deram uma educação católica… Mas desde muito cedo eu senti um apelo espiritual, e quando já estávamos em Portugal, eu devia ter uns 12 anos, disse à minha mãe que achava que Deus estava a falar comigo e que precisava de perceber o que era aquilo, que precisava de saber mais sobre Deus.

Ela achou estranho, mas encaminhou-me para aquilo que tinha sido a educação dela, então vim aqui para a igreja da Praça de Londres, e tive uma catequista, a Isabel, que me fez ficar completamente apaixonada pelo Novo Testamento. Ela era uma pessoa tão apaixonada pela Palavra, que me passou essa paixão e eu revi-me completamente na vida de Jesus, e pensei: “Quem é este homem inspirador de que ninguém me tinha falado?”. Às vezes, as pessoas partem do princípio de que toda a gente sabe, toda a gente entende o cristianismo, mas quando crescemos num meio em que não se fala sobre nada disso, Jesus pode ser totalmente desconhecido. E eu comecei a ficar superapaixonada pela Palavra, devorava o Novo Testamento, adorava o Evangelho de Lucas, achava que era tudo lindo e incrível e espetacular, uma maravilha… Pedi aos meus pais para ser batizada e fiz então o batismo, a primeira comunhão e o crisma.

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Foi através do gospel que a música e Deus ganharam, progressivamente, mais espaço na vida de Selma Uamusse. Atualmente, a cantora faz parte dos Gospel Collective, grupo que ajudou a fundar. Foto: Direitos reservados.

 

7M – Mas depois acabaste por te desligar da Igreja Católica… Porquê?

Sim, porque depois comecei a desiludir-me um bocadinho, não com Deus, mas com as pessoas que se diziam católicas. Achava que havia muita hipocrisia na Igreja… Além disso, entretanto eu já devia ter uns 15 anos, e a maior parte dos miúdos da minha idade que queriam ir para a igreja era mais para namorar… [risos] E eu queria era aquele despertar de fé, então afastei-me. Fiquei ali com aquela semente guardada, mas completamente adormecida. Só depois por causa do gospel e deste lado ecuménico do coro, em que havia pessoas crentes, não crentes, católicas, evangélicas, mais conservadoras, mais carismáticas, é que voltei a sentir um chamamento… Porque nós estávamos muito expostos à fé uns dos outros e havia sempre convites para irmos cantar a esta e outra igreja, sobretudo igrejas evangélicas, mas também muitas igrejas católicas. E houve um dia em que fomos cantar à igreja da qual eu hoje faço parte, a Logos Comunhão Cristã, e mal eu entrei senti: “Este é o teu lugar.”

 

7M – O que é que te fez sentir que pertencias àquela igreja?

Hoje, eu tenho o entendimento de que era o Espírito Santo a falar. Mas na altura houve vários fatores… Era uma igreja muito colorida, em que se falava inglês e também outras línguas, uma igreja muito virada para as missões, com pessoas de todo o lado e muito diferentes umas das outras! Lembro-me de isto me ter impressionado e de ter pensado: “Uma igreja onde há pessoas com o cabelo pintado de cor de rosa e azul? Eu quero fazer parte desta igreja!” [risos] Era uma igreja cool, mas ao mesmo tempo onde se percebia que havia muita profundidade…

Comecei a conhecer melhor as pessoas e claramente tinham noção de que estavam a fazer um percurso de fé, e de que não eram perfeitas, mas queriam intencionalmente estar mais próximas de Deus. Para mim, foi muito interessante conhecer uma outra forma de estar, em que as pessoas não vão obrigadas à igreja. No caso do catolicismo, como é cultural, havia muitas pessoas que iam só para “picar o ponto”, ou porque os pais obrigavam, e para mim foi muito importante esta questão da escolha, do livre-arbítrio, e de poder ter um relacionamento direto com Deus. Então, tomei a decisão de me batizar novamente, não que fosse obrigatório, mas porque achei que era importante para marcar este novo compromisso, e porque tinha um outro entendimento de uma série de coisas… E foi assim que a música me levou de novo a Deus, ou que Deus me levou à música… Foi assim que a minha fé se foi costurando com a música!

 

Estávamos muito expostos à fé uns dos outros [no coro gospel] e havia sempre convites para irmos cantar a esta e outra igreja, sobretudo igrejas evangélicas, mas também muitas igrejas católicas. E houve um dia em que fomos cantar à igreja da qual eu hoje faço parte, a Logos Comunhão Cristã, e mal eu entrei senti: “Este é o teu lugar.”

 

7M – Continuaste a cantar gospel, mas depois o gospel abriu-te portas para outros estilos musicais. A fé continuou igualmente presente?

Eu estava completamente rendida ao gospel: comecei a aprender técnica vocal e também a perceber que se calhar aquela facilidade que eu tinha era um dom, e que esse dom tinha que ser utilizado. Naquela altura, estava muito na moda os artistas terem um grupo de gospel a acompanhá-los, pediam-nos muitas vezes para ir a programas de televisão Uma vez, já com o maestro Guy Destino, recebemos o convite para gravar com uma banda. O Guy falou comigo e disse assim: “Há aí uma banda interessada em gravar, mas eles são um bocado estranhos, não sei se são satânicos ou não, vê lá o que achas, porque o tipo tem umas tatuagens assim com umas caveiras…” [risos]

Eram os Wraygunn! Eu conhecia o trabalho deles e fiquei logo entusiasmada. Ainda por cima, o disco chamava-se Ecclesiastes 1. 11 e o conceito era o da redenção do homem pecador, que está sempre em busca de Deus, mas é sempre tentado a pecar. Lembro-me de pensar: “Espetacular, tem tudo a ver, temos de fazer!”. E lá fomos nós… E se calhar pelo meu feitio e pela minha forma de estar, e não apenas pela minha capacidade vocal, houve um dia em que recebi um telefonema dos Wraygunn a pedirem para conversar comigo porque me queriam convidar para fazer parte da banda. E como sou uma pessoa que diz “Sim, vamos!”, aceitei.

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Selma Uamusse, à esquerda, integrou a banda Wraygunn em 2003. Foto: Direitos reservados.

 

7M – Como foi essa experiência? Converteste-os?

Não converti, mas fui sempre muito fiel ao que eu era e a conversão maior que acontece é quando nós somos um testemunho constante, na forma como agimos e vemos as coisas. Lembro-me de que, às vezes, havia discussões na banda e eu dizia: “Sabem, o meu pastor diz-nos que se nós discutirmos com as mãos dadas e olharmos uns para os outros, olhos nos olhos, vamos sempre lembrar-nos das razões pelas quais gostamos uns dos outros… Então, vamos dar as mãos e olhar uns para os outros”.

Isto era logo motivo de gozo, mas ao mesmo tempo eles aderiam e eventualmente deixávamos de estar chateados, nem que fosse porque nos ríamos destas coisas! Nas tournées, tínhamos uma carrinha e um carro, e o carro era chamado “eco-car”, que era onde eu estava sempre, em que não se podia fumar, não se podia beber… A verdade é que, no final, já toda a gente queria ir para o “eco-car”! [risos]

 

7M – Seguiram-se mais convites e continuaste a dizer “Sim, vamos!”…

Sim! A música foi ganhando mais importância por causa desses “sins”. Primeiro por causa de um “sim” numa festa de aniversário e depois de vários “sins” que eu fui dizendo ao longo do caminho. Por causa do gospel, além do convite para os Wraygunn, tive convites para gravar em discos de muitas pessoas e bandas, como o Rodrigo Leão ou os Cacique’97. Acima de tudo comecei a perceber que era uma chamada que eu tinha, que havia sempre portas que se abriam para mim e que, se elas se estavam a abrir, era porque havia um propósito maior do que a minha vaidade, a minha linda cara, a minha linda voz… E eu tinha de o cumprir.

 

Eu dizia: “Sabem, o meu pastor diz-nos que se nós discutirmos com as mãos dadas e olharmos uns para os outros, olhos nos olhos, vamos sempre lembrar-nos das razões pelas quais gostamos uns dos outros… Então, vamos dar as mãos e olhar uns para os outros”.

 

7M – Que propósito era esse?

O de poder falar de uma forma muito natural das coisas de Deus e levar esse Deus cristão à vida de pessoas que à partida estão fechadas, são agnósticas, ateias, ou místicas… Eu sinto efetivamente que essa é a minha missão. Não é ser uma pregadora de agarrar nas pessoas e dizer: “Agora vem para a minha igreja”.

 

7M – A verdade é que a tua avó já tinha previsto isto quando nasceste…

Sim, mas eu só descobri quando já era crescida! Ela conta que, no dia em que eu nasci, teve um sonho. Um anjo apareceu-lhe, disse que eu tinha nascido e que ia ter a missão de ser sal e luz no mundo através da minha voz! Na altura, não havia telefones e ela morava longe dos meus pais, por isso ela não sabia que eu realmente tinha nascido, mas pôs-se logo a caminho para os visitar. E depois fez questão de que eu tivesse Lucia no meu nome, que significa precisamente “luz”. E assim foi.

Mais tarde, quando já estava no gospel, fui recebendo outras profecias. Lembro-me da primeira vez que uma senhora veio ter comigo, em 2001, e disse: “Selma, eu vou dizer-lhe isto, e provavelmente vai achar um bocado estranho, mas eu tive um sonho em que a Selma estava a cantar para multidões…” Para mim, naquela altura, aquilo não fazia sentido absolutamente nenhum. Passado algum tempo, pessoas de contextos muito diferentes foram-me dizendo coisas semelhantes. E uma coisa que no início era estranha para mim ou que eu pensava que me diziam só porque gostavam de mim e para me incentivar, foi começando a ganhar outro sentido.

Até que houve uma pessoa, que entretanto se tornou uma grande amiga, que me disse de forma muito concreta: “Eu sinto que Deus te vai abrir muitas portas para tu cantares para muitas pessoas, mas especificamente para que tu possas levar o amor de Deus à vida de pessoas que jamais entrariam numa igreja, que jamais estariam recetivas a ouvir falar de Deus, mas que vão poder sentir-se tocadas pelo amor de Deus através de ti, em ambientes que lhes são confortáveis, em que se sentem seguras, e sinto que essa é a tua missão”.

 

7M – Nunca mais te desligaste da Logos Comunhão Cristã…

Não, e envolvi-me em muitas coisas: faço parte do grupo de louvor que canta semanalmente nos serviços religiosos, eu e o meu marido temos um grupo evangelístico de partilha, e trabalho como voluntária num centro de dia, com pessoas idosas, no Prior Velho, que é onde fica a igreja. É um trabalho em que eu vou lá cantar, animá-los com a música, mas que também tem sempre como objetivo falar sobre o amor de Deus, até porque muitas das pessoas estão numa fase em que mais cedo ou mais tarde vão morrer, e para mim é muito importante que estas pessoas possam escolher ter Deus, que façam este exercício de reconhecer Deus nas suas vidas, desejarem ter Deus no seu coração e poderem ter essa revelação de que há algo mais.

Também participo em outras coisas: às vezes organizamos concertos solidários, outras vezes conferências, é uma parte da nossa vida muito importante… Se eu quero ter uma vida de fé, então ela tem de ser uma fé ativa, constante, em que eu trabalho para que esse exercício de fé seja verdadeiro, e passa a fazer parte de mim. Eu já nem consigo muito bem distinguir o que é que é missão, ou o que é que sou eu: é um todo.

Na igreja Logos Comunhão Cristã, em Lisboa, Selma Uamusse faz parte do grupo de louvor que canta semanalmente nos serviços religiosos, mas também desenvolve atividades de cariz social e evangélico. Foto: Direitos reservados.

 

 

7M -– E teres sido mãe mudou de alguma forma a tua relação com a música e com Deus?

Mudou muita coisa. Para já, fez com que eu me tornasse mais dependente d’Ele. [risos] Eu viajo muito, então muitas vezes tenho de deixar as minhas filhas, e esse desapego é muito mais fácil pela fé que eu tenho. Na nossa igreja não batizamos as crianças, porque acreditamos que o batismo deve ser uma decisão em consciência, mas fazemos aquilo que se chama a entrega a Deus. E dizemos mesmo: “Deus, esta é a minha filha e espero que tu tomes conta desta vida”… Se eu não tivesse fé, se calhar não conseguia fazer esta entrega, no dia-a-dia… Mas assim é mais fácil. E também sei que eu sou uma mera portadora da vida de quatro mulheres, que se inspiram obviamente na educação que nós lhes damos, mas que vão seguir o seu caminho. Elas são minhas filhas, mas não são propriedade minha.

Quanto à minha relação com a música, também mudou muito com a maternidade. Passei a ser muito mais intencional em relação àquilo que canto, passei a ser muito mais cuidadosa em relação àquilo que canto… Não é uma questão de conservadorismo, nem de falso cristianismo: é só que para mim as palavras têm muito poder e eu passei a dar muito mais importância àquilo que dizia, porque se as minhas filhas ouvirem aquilo que eu estou a cantar, eu quero que elas entendam que tudo aquilo que eu canto tem um propósito de abençoar e não de amaldiçoar, e de ser uma mensagem da qual nós não nos envergonhamos. Passei, por exemplo, a ser muito criteriosa sempre que recebo algum convite para cantar e já são raras as vezes em que canto palavras de outras pessoas… Gosto muito de ter o controlo daquilo que é dito. Quero que as minhas filhas vejam no meu trabalho o reflexo daquilo que eu digo que sou.

 

Passei a ser muito criteriosa sempre que recebo algum convite para cantar e já são raras as vezes em que canto palavras de outras pessoas… Gosto muito de ter o controlo daquilo que é dito. Quero que as minhas filhas vejam no meu trabalho o reflexo daquilo que digo que sou.

 

7M – Qual é a tua maior preocupação enquanto mãe?

Acho que é ser muito fiel aos meus valores de uma forma prática. Não quero ser aquela pessoa hipócrita que vai à igreja, mas que depois em casa berra com as crianças, que fala de Deus, mas que depois não é amor, que diz que as palavras têm muito valor e muita importância, mas que depois diz asneiras. Acho que me tornei um bocadinho mais exigente em relação a mim mesma, em relação à música que faço, e especificamente em relação àquilo que digo.

Passaram a ser raras as coisas que eu escrevo que não tenham uma parte de um versículo, ou que não tenham uma inspiração bíblica. Porque posso dar um versículo bíblico para sustentar tudo aquilo que me move, como o conservarmos o planeta, o cuidarmos dos animais, o cuidarmos uns dos outros, ou o cuidarmos do nosso corpo…

Selma Uamusse com a mais nova das suas quatro filhas, em viagem a Maputo, dezembro de 2022. Foto Direitos reservados.

 

7M – Isso é muito visível nos teus dois discos em nome próprio, e em particular neste último, Liwoningo, que significa “luz” em chope (uma das línguas de Moçambique), e fala de sermos luz uns para os outros. Sentes que este álbum, lançado em plena pandemia, chegou na altura certa?

Foi muito providencial lançar este disco num momento em que sinto que todos estávamos a ficar muito individualistas. Para mim, já era muito importante a questão do olhar o outro, do pensar o outro… e esta luz de que eu falo no Liwoningo tem muito a ver com o não guardar a fé em mim. Porque até na espiritualidade estávamos a ficar individualistas. As pessoas dizem: “eu sou muito espiritual, eu medito muito, eu, eu, eu…” E para mim ter fé é para ser um vaso comunicante, para ser um vaso que derrama para a vida das outras pessoas.

 

Às vezes estamos tão cheios de razão no nosso discurso muito informado e muito cheio de argumentos, e muito tecnológico e digital, que temos muita dificuldade em parar e ouvir o outro.

Precisamos muito de um lugar de escuta. Não nos temos escutado uns aos outros. No lugar de escuta, mesmo que o outro discurso seja completamente diferente do nosso, aprendemos sempre alguma coisa, e a respeitar um bocadinho o outro.

Até enquanto crentes, às vezes parece que só queremos despejar os nossos pedidos para Deus. Mas precisamos de parar para ouvir o que Deus nos está a dizer, e perceber como é que Deus nos está a guiar. O meu próximo álbum, no qual já estou a trabalhar e que espero poder lançar em 2024, será muito sobre esse lugar de escuta, de parar e escutar o outro.

 

7M – Aprendemos a ser menos individualistas com a pandemia?

Não gosto de ser pessimista… Tento ver sempre as coisas com o copo meio cheio! [risos] A pandemia teve muitas coisas muito boas, mas também teve muitas coisas muito más. Não sei se estamos melhores, mas pelo menos valorizamos mais o tempo em que estamos juntos, às vezes até um bocado por receio de podermos voltar a estar em situações semelhantes.

 

selma uamusse_ativismo contra o racismo

Selma tem participado em diversas ações de luta contra o racismo. “Preocupam-me muito os discursos extremados, a radicalização, a xenofobia crescente”, diz.

7M – Ao mesmo tempo, os extremismos têm vindo a aumentar…

Sinto muito o extremar de posições, e nem sequer quero falar das esquerdas ou de direitas, mas preocupam-me muito os discursos extremados, a radicalização, a xenofobia crescente. Acima de tudo preocupa-me muito o facto de termos cada vez menos espaço para nos ouvirmos uns aos outros. É super-importante o lugar de fala e às vezes o lugar de fala passa só por nós estarmos num determinado sítio e já marcamos uma posição. O facto de eu, enquanto mulher negra, africana, migrante, estar num determinado sítio, ocupar uma determinada posição, isso por si só, muitas vezes, já é importante.

Às vezes estamos tão cheios de razão no nosso discurso muito informado e muito cheio de argumentos, e muito tecnológico e digital, que temos muita dificuldade em parar e ouvir o outro. E muito se tem falado sobre o lugar de fala, mas acho que precisamos muito de um lugar de escuta. Não nos temos escutado uns aos outros. No lugar de escuta, mesmo que o outro discurso seja completamente diferente do nosso, aprendemos sempre alguma coisa, e a respeitar um bocadinho o outro. Até enquanto crentes, às vezes parece que só queremos despejar os nossos pedidos para Deus. Mas precisamos de parar para ouvir o que Deus nos está a dizer, e perceber como é que Deus nos está a guiar. O meu próximo álbum, no qual já estou a trabalhar e que espero poder lançar em 2024, será muito sobre esse lugar de escuta, de parar e escutar o outro.

 

7M – E neste momento é preciso escutar Moçambique, e em particular o que se passa em Cabo Delgado…

Sem dúvida. Há muitas teorias sobre o que está na origem deste drama de Cabo Delgado, mas o mais importante é que continuam a ser dizimadas pessoas, as pessoas continuam a ter de fugir das suas regiões… E Cabo Delgado continua a ser ocupado. Há algumas instituições religiosas a fazer um trabalho muito grande, nomeadamente a Iris Global, que é uma instituição americana. Mas há uma “invisibilização” do que se passa e parece que só quando pessoas como eu falam sobre isso é que se torna notícia.

É uma situação que me entristece e preocupa muito. Sinto uma responsabilidade acrescida de continuar a ser voz daqueles que não têm voz, para que que os governos e a comunidade internacional também possam intervir. Além isso, também me deixam muito preocupada questões como o impacto que as alterações climáticas têm no nosso país: as cheias, as secas… As alterações climáticas aumentam ainda mais o fosso que existe entre homens e mulheres, aumentam o peso daquilo que é a sua responsabilidade, e aumentam a pobreza. E Moçambique é dos países no mundo mais vulneráveis às alterações climáticas.

 

Acredito que Deus nos coloca aqui na Terra para nós fazermos alguma coisa uns pelos outros e pela própria Terra. Portanto, não dissocio o meu ativismo em relação às alterações climáticas daquilo que é a minha fé. Pelo contrário: é uma responsabilidade, sinto que ser ativa é uma responsabilidade minha, enquanto pessoa crente, e eu não posso fugir dela porque se eu falo do amor de Deus, eu não posso ficar indiferente àquilo que está a acontecer na vida das outras pessoas. Tenho de acordar incomodada com a forma como os outros estão e portanto a minha fé tem de ser combustível para fazer alguma coisa em relação a isso. É essa a minha missão.

 

7M – Enquanto crente, como é que encaras todo esse sofrimento?

Obviamente, não acredito que isto sejam castigos divinos. Precisamos de tomar consciência de que muitas das coisas que nos acontecem são consequências do que nós, enquanto homens e mulheres, fazemos com o livre-arbítrio que Deus nos dá. E muitas vezes queremos culpar Deus: “se Ele existe, porque é que há fome, porque é que há guerra?”. Porque nós, enquanto seres humanos, temos o livre-arbítrio de fazer escolhas. Deus é cavalheiro, deixa-nos fazer escolhas. Mas também nos dá oportunidades para que nós possamos ser agentes transformadores da sociedade.

Acredito que Deus nos coloca aqui na Terra para nós fazermos alguma coisa uns pelos outros e pela própria Terra. Portanto, não dissocio o meu ativismo em relação às alterações climáticas daquilo que é a minha fé. Pelo contrário: é uma responsabilidade, sinto que ser ativa é uma responsabilidade minha, enquanto pessoa crente, e eu não posso fugir dela porque se eu falo do amor de Deus, eu não posso ficar indiferente àquilo que está a acontecer na vida das outras pessoas. Tenho de acordar incomodada com a forma como os outros estão e portanto a minha fé tem de ser combustível para fazer alguma coisa em relação a isso. É essa a minha missão.

 

7M – Tendo em conta o momento que vivemos e este imperativo de não ficarmos indiferentes, que música tua aconselharias os leitores do 7MARGENS a escutar?

Eu escolheria Maputo, que é o terceiro single deste segundo álbum: tem o nome da capital de Moçambique, mas na realidade é uma canção que fala um bocadinho sobre o fim dos tempos. Na altura em que escrevi isto nem sequer estava a pensar na pandemia. A música fala sobre estarmos prontos para manter os nossos valores, para mantermos aquilo que somos, independentemente das circunstâncias e das coisas que acontecem à nossa volta.

Creio que é uma música muito pertinente, porque muitas vezes nós de cor dizemos que somos crentes, ou que somos pessoas muito boazinhas ou que somos pessoas muito solidárias e depois, em tempos de crise, como foi na pandemia e como é hoje, o nosso individualismo, o nosso auto-centramento, fazem com que sejamos xenófobos, faz com que não nos preocupemos com os outros, faz com que percamos tudo aquilo que dizemos que somos e em que acreditamos. É uma canção que fala de quais é que são as tuas raízes e questiona se te manténs fiel e firme em relação a elas. E também fala sobre como Deus está no meio da confusão das cidades como Maputo, em que há stress, em que há correria, em que há pessoas a pedir e há pessoas com muito dinheiro… Deus está no meio destas coisas todas. E onde é que tu estás no meio disso tudo? E como é que nós podemos manter-nos fortes e firmes em amor? Acho que essa é a minha mensagem para o mundo.

 

(A música “Maputo” pode ser escutada no vídeo a seguir.)

 

 

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