
” ‘Aquele primeiro dia em que o ferrolho da fechadura se fechou atrás de nós…’ – dizem-nos quase todos os reclusos. Nós também sentimos isso, também ouvimos as grades frias fecharem-se à nossa passagem e as pesadas voltas na chave.” Foto © Wendy Alvarez / Unsplash
Ser visitador prisional é viver um pouco preso também. É entrar na cadeia muitas vezes contra tudo e contra todos, muitas vezes ser menos bem tratado pelo sistema, sorrir e seguir em frente.
“Aquele primeiro dia em que o ferrolho da fechadura se fechou atrás de nós…” – dizem-nos quase todos os reclusos. Nós também sentimos isso, também ouvimos as grades frias fecharem-se à nossa passagem e as pesadas voltas na chave. E se um dia eu entrasse e ficasse cá dentro? Haverá algum visitador prisional que nunca tenha pensado nisso? Como viveria eu a minha primeira noite? Como viveria o meu primeiro dia? Todas as outras noites? Todos os outros dias? Dezenas, centenas, demasiados. Numa cela gelada e húmida, obrigada a conviver com pessoas totalmente diferentes, obrigada a partilhar frustrações e medos alheios, sem o beijo amoroso da minha mãe, sem o abraço caloroso do meu pai? Sem passeios à beira-mar ou na floresta? Como seria a minha vida sem sol? A viver com culpas e remorsos dos meus erros e com todo o tempo do mundo para eles me atormentarem? A chorar todas as lágrimas que tenho até elas secarem por completo? A pensar na vergonha que sentiriam de mim os que me amam, eventualmente também eles a culpar-se por eu ali ter chegado, a imaginar os amigos que em breve deixariam de o ser e as visitas que nem sei se quereria ter, só para não ver nos olhos do outro lado da mesa no parlatório o sofrimento que causei. Mereceria cá estar dentro? Talvez sim, talvez não. Mas isso pouco importaria para o que agora seria a minha nova realidade. Teria forma de limpar a minha alma escura e de me regenerar? Vontade e capacidade de me reconciliar comigo própria antes de tudo? E Deus estaria lá de facto para me levar ao colo?
O medo. Como viveria com o medo constante a todas as horas do dia e da noite? Quem viria em meu auxílio? Alguém algum dia se importaria comigo? Com as razões que levaram a minha vida a seguir um percurso até aqui chegar?
Ser visitador prisional é ser sempre bem recebido e estimado pelos reclusos que sentem em nós uma brisa de ar puro, um raio de sol, um motivo para sorrir. Não vamos levar Deus à cadeia. Ele já cá está, não é, querido e saudoso padre João [Gonçalves, coordenador da pastoral prisional que morreu em 2020]?
Mas ficamos felizes por perceber que há quem O procure aqui dentro, às vezes pela primeira vez, por haver quem fique de olhos rasos de lágrimas quando escuta algumas das Suas palavras e no fim nos pegue nas mãos e diga apenas “Muito obrigado por ter vindo.”
Se um dia eu estivesse cá dentro, penso que tudo o que desejaria era encontrar alguém que não me julgasse mais, que me sorrisse e desse as boas-vindas, que não se importasse com os meus crimes e me tratasse como um ser humano que está a tentar reerguer-se. Alguém que tivesse empatia e percebesse que qualquer um de nós é maior do que os seus erros. Alguém que me recebesse de braços abertos sem receios nem restrições mentais. Alguém que me perguntasse se eu estava bem e me ajudasse nos dias mais difíceis. Alguém em que eu pudesse confiar e com quem pudesse conversar sabendo que me escutava sem estar a avaliar-me. Alguém que me fizesse sentir “Eu importo”.
E, acima de tudo, alguém que me fizesse acreditar que um dia, lá fora, não estaria sozinha nem desamparada e teria sempre quem me apoiasse. No fundo, alguém que me visse como eu afinal sou, uma pessoa que erra e continua sempre a tentar não errar mais.
Lígia Pires é visitadora nos estabelecimentos prisionais de Custóias, Santa Cruz do Bispo e Polícia Judiciária/Porto; testemunho apresentado no momento de renovação do compromisso dos visitadores após a cerimónia do Lava-Pés, na celebração de Quinta-Feira Santa com reclusos, nos estabelecimentos prisionais da região Porto/Matosinhos.