
Um sobrevivente nos 60 anos da libertação de Buchenwald (Alemanha), 2005): “Ao ouvir os gritos daquele homem dei-me conta de que afinal ainda não tinha entendido” o Holocausto. Foto © Helena Araújo
Um amigo meu, médico alemão, contou-me que nos anos oitenta trabalhou num hospital em Chicago, num edifício que tinha sido um hospital psiquiátrico. Um dia, viu um homem a sair de uma enfermaria e a fugir pelo corredor soltando gritos horrorosos, completamente fora de si. Era um sobrevivente do Holocausto, que teve uma terrível crise de pânico ao ver-se dentro de um quarto com grades nas janelas.
Disse o meu amigo: “Pensava eu que sabia tudo sobre o Holocausto, mas ao ouvir os gritos daquele homem dei-me conta de que afinal ainda não tinha entendido.”
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Quando em Weimar comemoraram os 60 anos da libertação de Buchenwald, fomos várias vezes ao campo para assistir às cerimónias e falar com alguns dos 500 sobreviventes que tinham sido convidados. Num dos dias fui com a Christina a uma celebração ecuménica na plataforma junto à linha de comboio. À entrada do campo pegamos em rosas que estavam a dar para os visitantes pousarem onde quisessem, e seguimos para a celebração.
No final, um homem – que trazia o uniforme de prisioneiro vestido por cima da sua roupa quente – avançou pela plataforma na nossa direcção. Tirou o microfone da mão do pastor evangélico, e começou a falar em russo. O pope traduziu para nós. Ficámos a saber que era ucraniano, se chamava Pjotr, e tinha 16 anos quando os nazis agarraram nele sem mais nem porquê no meio da rua e o enviaram para Buchenwald. Precisavam de mão-de-obra, e serviam-se aleatoriamente das pessoas dos países conquistados. “O comboio chegou aqui de madrugada, havia muito nevoeiro. Trabalhei nisto, trabalhei naquilo, fui transferido para. Acreditem em mim, isto aconteceu! Isto foi verdade! Eu vi, eu estive aqui! Acreditem nisto que digo!”
Num impulso, a Christina – que tinha 10 anos – deu-lhe a sua rosa. Ele agarrou-se a ela num longo abraço.
“Mãe, porque é que ele chorou tanto quando lhe dei a rosa?”

Grupo de sobreviventes de Buchenwald (Alemanha), 2005: “Acreditem, isto aconteceu! Isto foi verdade! Eu vi, eu estive aqui! Acreditem nisto que digo!” Foto © Helena Araújo.
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No primeiro dia das comemorações dei comigo a caminhar atrás de algumas velhinhas que envergavam o seu antigo uniforme, com a letra P sobre um triângulo vermelho. Prisioneiras polacas. Iam a conversar com alemães, que as tratavam com deferência e afecto. Fiz por me manter relativamente longe delas, sentindo pudor, embaraço, vergonha: que poderia eu dizer a alguém que esteve preso naquele campo, que passou o que elas passaram?
Lembrei-me do meu amigo, que já sabia tanto sobre o terror nazi, e afinal tinha entendido muito pouco. A consciência do pouco que entendo sobre a sua imensa tragédia deixava-me paralisada, incapaz de comunicar com essas pessoas. Por respeito, por assombro, por temor de não saber dizer as palavras capazes de estender uma ponte em direcção ao abismo do horror para onde os nazis as atiraram.
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“E você é o quê?”, perguntou-me o sobrevivente judeu, que tinha 15 anos quando os americanos chegaram a Buchenwald, e já tinha vindo de Auschwitz.
Desprevenida, dei uma resposta qualquer. Mas ele queria saber porque é que uma portuguesa se associara às comemorações da libertação de um campo de concentração nazi.
Disse-lhe que o trabalho da memória é responsabilidade de nós todos, contei-lhe daquela vez que me enganei no caminho para o supermercado e de termos ido parar ao campo de concentração, e de o Matthias, com 5 anos, me ter perguntado o que teria eu feito se vivesse nessa altura.
– E você explicou-lhes que aqui morriam pessoas apenas por pertencerem a um grupo que os alemães queriam exterminar?, perguntou ele com a voz a tremer.
– Sim. Disse-lhes que imaginassem como seria alguém querer que eles morressem apenas por serem filhos de uma portuguesa.
Fitou-me mudo, com os olhos cheios de lágrimas.

“Disse-lhes que imaginassem como seria alguém querer que eles morressem apenas por serem filhos de uma portuguesa.” Buchenwald (Alemanha), 2005. Foto © Helena Araújo
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Um pouco mais tarde falou da cerimónia que tinha tido lugar no Teatro Nacional – o mesmo onde nasceu a República de Weimar. Os adolescentes do famoso internato de música Schloss Belvedere tinham cantado a “canção de Buchenwald”, eu tinha-os visto na televisão e achara lindíssimo. Aquele sobrevivente dizia que não: foi bonitinho e afinado, mas não teve nada a ver com o que ele e os outros prisioneiros cantavam ao marchar para o trabalho, exaustos e famintos, cheios de frio e doentes. E então, no meio da praça do mercado de Weimar, mostrou-me como se cantava a “canção de Buchenwald” no campo:
O Buchenwald, ich kann dich nicht vergessen,
weil du mein Schicksal bist.
Wer dich verließ, der kann es erst ermessen,
wie wundervoll die Freiheit ist! (*)
– aquela voz forte e segura, aquela voz que nunca esquecerei: onde se misturavam a raiva, o orgulho e o desespero.
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“”Quem não tivesse um camarada no campo, alguém que ajudasse e estivesse sempre presente e atento, estava perdido.” (Nos 60 anos da libertação de Buchenwald, Alemanha, 2005. Foto © Helena Araújo
A assistir a uma conversa entre alguns alunos de liceu e um grupo de antigos prisioneiros, o Joachim reparou que um dos antigos prisioneiros ucranianos tinha um melanoma no nariz, e ofereceu-se para o levar ao seu hospital. A operação fez-se, correu bem, e no dia do seu regresso à Ucrânia fomos à estação de comboio despedir-nos dele e dos seus amigos.
Estavam bem-dispostos. Riam, faziam piadas uns com os outros, sorriam-nos. O senhor a quem a Christina dera a rosa também lá estava, e também nos sorria. O que tinha sido operado tinha um penso enorme no nariz, e um hematoma por baixo do olho. Apresentou-nos um amigo, e disse no seu alemão rudimentar: “quem não tivesse um camarada no campo, alguém que ajudasse e estivesse sempre presente e atento, estava perdido. Este – e apertava mais o braço do amigo, que sorria com os olhos brilhantes – foi o meu camarada em Buchenwald. Devo-lhe a vida.”
O outro riu-se. Apontou o hematoma no olho, e comentou em alemão, com uma piscadela de olho na nossa direcção: “olha para o estado em que te puseram naquele hospital! Quando chegares a casa e a tua mulher vir isso, dizes que foram os bandidos.”
Rimos todos. Mas eu fiquei a pensar na palavra que ele usara, “os bandidos”. Não sabia que era o nome que eles davam aos alemães (ou seria aos nazis?). E de novo cresceu em mim aquele pudor doloroso: a consciência de nada saber sobre os terríveis caminhos que a máquina de horror nazi abriu naquelas pessoas, e que elas continuariam a percorrer em pesadelo muitos anos depois da libertação.
(*) O Buchenwald, não te posso esquecer,/ porque tu és o meu destino./ Só quem te abandonou,/ pode apreciar quão maravilhosa é a liberdade!
Helena Araújo vive em Berlim e é autora do blogue Dois Dedos de Conversa, onde este texto foi inicialmente publicado.