A linguagem não é só palavra, é também gesto, silêncio, ritmo, movimento. Uma maior atenção a estas realidades manifesta uma maior consciência na resposta e, na liturgia, uma qualidade na participação: positiva, plena, ativa e piedosa. Esta é uma das ideias do livro Mistagogia Poética do Silêncio na Liturgia, de Rafael Gonçalves, diácono da diocese de Braga.
O autor propõe que uma busca do invisível, do Deus silente, é paulatinamente trabalhada pelo desejo do silêncio, pelo desejo da escuta, pelo desejo da intimidade mais profunda com a Sua Palavra.
Na liturgia, o silêncio convida ao recolhimento e à reflexão e, nesse sentido, tem o mesmo intuito da vida contemplativa. Por isso, educar para o silêncio é abrir, progressivamente, a comunidade cristã a um relacionamento com Deus, a uma vivência ativa, plena e piedosa da vida litúrgica pela participação interior que nos dispõe a uma verdadeira participação exterior.
O livro será apresentado no próximo dia 17 de Dezembro, às 21h, na Igreja Matriz Antiga de Vila Nova de Famalicão. Intervêm Alzira Fernandes e o abade de Singeverga, Bernardino Costa. O 7MARGENS publica a seguir o prefácio, da autoria do padre Joaquim Félix de Carvalho, vice-reitor do Seminário Conciliar de Braga.
Silêncio: a luz adentra no corpo
Texto e fotos de Joaquim Félix de Carvalho
«Ninguém ama / tanto o silêncio ―/ raízes»
(Jorge Sousa Braga, O Novíssimo Testamento e Outros Poemas, 18)
«Deixas cair uma pedra na boca de um poço, passam uns instantes e ouve-se um mergulho “seco”, revelando como a água no fundo guardava silêncio.»
(Josep Maria Esquirol, Humano. Mais Humano. Uma Antropologia da ferida infinita, 93)
Da epístola à raiz da palavra

Será como abrir uma epístola. Desprovido de ruídos, este silente e retumbante livro, da autoria de Rafael Gonçalves, pode comparar-se a uma extensa epístola. Aceder à porta onde foi lançada, na ocular fissura horizontal, de marco ou portal, é já embrenhar-se pelo silêncio adentro. É cuidar de expectativa, na obscuridade abissal, onde estremecem palavras com raiz. Que esperarão elas? Que os olhos recolham articulados frutos silábicos e pétalas diacríticas? A sua sintaxe? Muito mais. Porque ele peregrina na ampla alvura das páginas, nos ecos da artesanal grafia como líquenes de silêncio. E que respirar ouviremos da sua concentração? Haverá uma cosmotheosis em fundo plantio? Sim, ele será rizomático no sentido litúrgico e, embora na sua omni-senciência, para além dele (a evitar os seus subterfúgios e as reduções da tentadora interpretação), como desejo de velado consumar ou temperatura daquilo que se acende. Por certo, mais do que uma ‘quântica’, na relação comunicante, que entrelaçará o autor e os leitores desde o silêncio antecedente, aquém da palavra. Que, por surpresa apocalíptica, digo da leitura do livro, iluminará o final. Na santa quietude, na luz ‘falante’ do silêncio, se espera.
Rafael Gonçalves estreia-se na paisagem editorial com este livro. Nele, convoca os leitores à experiência litúrgica, nos seus mistérios, através de um sábio mistagogo: o silêncio. Veremos que ele até será mais do que este múnus. Adota, por conseguinte, um léxico esmeraldeado, típico da sóbria correspondência epistolar; porém, na vertigem de uma poética humificada. Talvez por isso nos suspenda, de início, em saudação, numa epístola em vertical epígrafe, precisamente na «Epístola sobre o Silêncio», poema da autoria de Jorge Sousa Braga (O Novíssimo Testamento e Outros Poemas, 18-19). «Nestas ervas/ só o silêncio/ se pode deitar». É a primeira estrofe. Procurando evitar equivalências espúrias, de indevidos desvios, poderia traduzir-se para a vasta epístola rafaélica: «Nestas páginas/ só o silêncio/ se pode deitar». Às ervas ou às páginas (que as ervas também se paginam), o repto é para deitar tão-só o silêncio, na leitura sem voz. Quase como rasto de ausência sinuosa, por onde a lagarta mineira mapeia, nas folhas duma laranjeira, a fome.
A palavra tem o seu pendor. Uma obliquidade. A cada página, nela o peso reclina. Assim o dita Jorge de Sousa Braga: «Uma folha de erva/ verga-se sob o/ peso de uma palavra» (3ª estrofe). Possa a leitura do livro de Rafael inclinar ao peso das páginas, a cada palavra. Porque as suas palavras são rizomáticas. Não diria, primeiro, da etimologia ou da filologia. Embora haja um amor à palavra, seria importante lê-lo no elogio da segunda estrofe da «Epístola sobre o Silêncio»: «Ninguém ama/ tanto o silêncio―/ raízes». Porque, repito, as palavras rafaélicas expandem-se no texto, pelo seu chão ou no ar da transumante folhagem, com raízes. É um autor «Atento/ ao eco/ do silêncio» (7ª estrofe). Nele, nessa espécie de ‘rumor’ (o silêncio fala), procura a sua vera voz escrita. Desse «vento por dentro/ Um pensamento/ levanta voo» (5ª estrofe).

Levanta voo o pensamento, mas sem deixar ainda de nos endereçar, pouco adiante, outra epístola. Nada mais nada menos, «A carta do silêncio», de Herberto Hélder, publicada em Photomaton & Vox. Sempre na linha do ‘aparente’ paradoxo, acima sublinhado, a de «fazer falar o silêncio», segundo Manuel Frias de Martins (Herberto Hélder – Um silêncio de bronze, 167). De um silêncio que proporciona novas hermenêuticas da ‘idiossincrasia’ existencial, a permitir um reencontrar-se, num corpo-poço-ou-buraco. Assim o interpreta Herberto Hélder: «o corpo é um buraco onde cai o corpo. Esta queda em si mesmo comporta uma ciência derradeira, o saber de uma luminosa profundidade física» (Photomaton & Vox, 167).
A tanger o texto de Rafael Gonçalves, ambas as epístolas do silêncio remetem-nos para um poema (inédito, e por isso mais silente no seu ditar), da autoria de João Paulo Costa, que servirá como ‘sintetizador’ das palavras e dos pensamentos até aqui abertos: «Câmara escura/ de sombras restantes nos memoriais/ de corpos inundados de paisagens ancestrais/ viático que abre à lápide gélida/ a sepultura rasgada por uma ténue luz/ vibrantes e descoloridas são/ as coisas vindas da pele do sensível/ simples coisas? que alhures nos vem delas?/ ultra-coisas?/ rostos fixos, perfilados, que dançam/ na antecâmara da morte/ à espera de uma mão ensolarada/ que os resgate do olvido,/ profunda claridade em fundo negro,/ o que não vemos aí?/ fundo sem fundamento/ é o abismo da divindade/ enxuta, impensada e imunda/ réstia de sombra/ que rasga o ser horizontal,/ esmaecido e apaziguado,/ em ser vertical,/ tonificado e desassossegado,/ mergulhado na obscuridade/ de um labirinto cruciforme/ inconsútil? de onde surge/a consistência resistente da matéria,/ a sua luminosidade?/da sombra semântica que a envolve/ para ver o “mundo em redução”,/ a levitação de corpos textuais/ até ao lugar onde nasce a penumbra/ da vida/ diálogo e resistência/ contaminação/ chiaroscuro/ sombra de sombras bioluminescentes/ o rasto rumoroso de um silêncio bárbaro?» (Que Mundo aparecente? Para Pedro Costa, Rui Chafes, Paulo Nozolino, Pompidou-Paris, junho 22). O poema é dedicado a Rui Chafes, Paulo Nozolino e Pedro Costa, que, como ‘sonata a trio’, expuseram «O resto é sombra», este ano (8 de junho a 22 de agosto de 2022), no Centro Pompidou, em Paris.
A sala, o corpo e o buraco

Por esta última poética, qual porta para um corpus textual, e sempre com a obra de Rui Chafes, desta feita exposta presentemente no Parque e Museu de Serralves, poderíamos entrar numa sala depois do “Sudário” (escultura), prólogo e epílogo da exposição «Chegar sem partir», para sentir o seguinte: «Uma vez na primeira sala, somos engolidos por uma escuridão profunda à medida que o silêncio e o vazio se impõem. Depois de uns minutos, quando os olhos se habituam, identificamos a presença espectral de cinco esculturas que pairam no ar como vultos de objetos cortantes. “Tranquila ferida do sim, faca do não (2013/18)” oferece uma experiência mística e metafísica no espaço, um momento de epifania e revelação» (Libelo da exposição).
Fazer a experiência nesta sala é um ritual de iniciação ao silêncio e através dele, para ver, depois de esperar-se na lentidão dos olhos, por eternos que pareçam cinco minutos, e sentir o que nele habita (e em nós se demora, sem ou com horror, como a vida é), a «tranquila ferida do sim» ou a «faca do não», as esculturas em espectro. Essa sensação de ser-se engolido pela escuridão profunda, sentindo o silêncio tomar-nos, com o seu vazio pleno, como uma oxímera fala sem voz, remete-nos uma vez mais para uma passagem, ritual quanto poética, que Herberto Hélder diz acontecer no corpo, quando o identifica com um «buraco». Cair em si, cair pelo corpo adentro até ao seu fundo mais fundo, abismo sálmico atraente de abismos, é a via por onde somos conduzidos a uma sabedoria de, repita-se, «luminosa profundidade física» (Photomaton & Vox, 167).
Talvez por coincidência, possível em quem a veja, ou por acaso, improvável como aquela, acaba de exibir-se nos cinemas «Das Profundezas/Il buco», um filme de Michelangelo Frammartino, ao qual foi atribuído o Prémio Especial do Júri, no Festival de Veneza (2021). Lançado em França a 27 e abril de 2022, o filme ajudará, na sequência do tríptico ‘sala, corpo, buraco’, a adentrar no livro de Rafael. Porém, antes de nos determos na sua estrutura, façamos uma sinopse do filme para dele colher um fragmento, breve aliás, que se tornará elucidante para o fim assinalado.
Enquanto o elevador escala os babélicos 132 metros do arranha-céus Pirelli, construído em Milão durante o boom económico no pós-segunda guerra mundial, com funcionários a trabalhar por trás das vidraças, sem deles entender as palavras e os cálculos, num planalto do Parque Nacional de Pollino, situado na Itália meridional, nas províncias de Cosenza, Matera e Potenza, processa-se, através de um ‘manual-de-cordas’, a descida a um obscuro buraco, conhecido por ‘Abisso del Bifurto’. A sua profundidade é de cerca de 700 metros, uma das grutas mais profundas da Europa. O processo de preparação e prospeção da gruta faz-se sob olhar de um velho pastor autóctone, apresentado como uma das últimas, senão a derradeira, testemunhas do imenso território incontaminado, que fala ainda (com ele morrerá?) um ‘dialeto-de-apascentar-amimais’.
Descanse quem lê, para evitar claustrofobias, a abreviada narrativa não é feita para nos juntarmos aos jovens espeleólogos. Nem para nos demorarmos no sonoro desenhar do mapa, ao ritmo da lapiseira a tinta de antigo tinteiro, ou nas poderosas metáforas, que o seu realizador, Michelangelo Frammartino, potencia e, em curtas entrevistas (v.g. Entretien avec Michelangelo Frammartino à propos du filme Il Buco), refere do ‘substrato’ que o animou a fazer este novo filme. A intenção é simplesmente esta: contemplar o minuto 30,37’-30,57’, durante o qual é lançada, para dentro do buraco, uma bola de papel em fogo. O lume, com a sua fala (não só porque tem rumor), cala vertiginosamente em direção às profundezas, e mostra en passant a orografia interna da cavidade, assinalando, aqui e ali, as protuberâncias das suas paredes, bem como as sombras e obscuridades, até demorar-se num clarão de luz indireta. A câmara faz-nos acompanhar o seu rasto luminoso e sonante (já antes se tinha ouvido o rasto de duas pedras, lançadas para o interior do buraco). É, talvez, uma sugestiva imagem, contemporaneamente sonora e ótica, para dizer como se estrutura o livro de Rafael.
Arquitetura silente do Livro de Rafael

O tríptico anterior abre-nos para o tema do livro em apresentação e facilitará a leitura do desenho arquitetónico do mesmo. Algo narrativo, o título suscitará um interesse natural, quer para a leitura, quer para a experiência litúrgica, ou para-litúrgica, na práxis espiritual. Porém, ele necessitará de alguma contextualização adicional, para que sejam legíveis as fundamentadas opções feitas pelo autor. Antes de mais, convém referir que o texto corresponde à sua dissertação, de 1º grau, no Mestrado Integrado em Teologia, da Faculdade de Teologia, no dia 29 de abril do presente ano, no Centro Regional de Braga, da Universidade Católica Portuguesa. O resumo/abstract e a introdução, esclarecedoras na sua pronunciada economia verbal, são um esquisso a traço veloz do que se concretiza, capítulo a capítulo, três no total.
A que fundura lançar o alicerce? Tudo depende da altura a que o edifício se há de elevar. Tendo presente o título «Práticas silenciárias e mistagogia poética do silêncio na liturgia», o autor interpreta como importante, no capítulo primeiro, explorar o silentium, supondo a etimologia e a evolução histórica do silêncio, registos habituais nos tratados sistemáticos, para se concentrar, detidamente, na sua base antropológica. Daí ter procurado explorar, a partir das relações humanas, as conexões existentes entre ‘escuta e palavra’, e a ‘escuta do silêncio’.
A sua premissa metodológica, centrada nesta ciência humana, sem negar outras, possíveis e capazes de enriquecer a reflexão, diferencia-se, por exemplo, daquela seguida por Klaus Berger, adotada no livro «Callar. Una teologia del silencio», publicado em 2021, pela Editorial Verbo Divino. Neste caso, Berger decidiu iniciar a reflexão por uma fenomenologia do silêncio, com a seguinte premissa: «Com a carmelita Edith Stein, sigo o método modificado da fenomenologia de Edmund Husserl, isto é, expor-se a um objeto como se fosse o único no mundo, o que a todo o momento dá um voo para as categorias e experiência que levo comigo» (Callar. Una teologia del silencio, 13). Rafael Gonçalves não tem por escopo uma ‘teologia do silêncio’ stricto sensu. O seu campo, assinalado com marcos sóbrios, é outro: uma ‘praxologia litúrgica do silêncio’, no âmbito de uma possível teologia prática, que tem por base de referência a celebração litúrgica, nomeadamente, mas não de forma exclusiva, a do sacramento da eucaristia.

Delimitado o tema, como continuar a prospetá-lo? A abertura do segundo capítulo com as palavras de Michel Henry ― «Nós, seres humanos, somos os habitantes deste mundo, e este ser-no-mundo que define o nosso ser realiza-se, em primeiro lugar, através da mediação dos nossos sentidos, visão e audição de uma forma especial» (Ver lo invisible: Acerca de Kandinsky, 133) ― aponta para a experiência multissensorial. Poderia colocar-se como horizonte de estudo o plural manifestar do silêncio associado às diversas artes? Seria ótimo. Porém, em certo sentido utópico para os propósitos da presente investigação, embora desafiante, o autor decide-se por uma seleção de artes: escritura, música, pintura. Da maior relevância na ação litúrgica, não poderão ser vistas como as ‘protuberâncias’ das paredes do tema, iluminadas no corpo onde se cai em reflexão?
Às cartografias do silêncio, sucede o capítulo terceiro, no qual Rafael Gonçalves se dedica a usar as cordas da descensão, para atingir o fundo daquilo que designa por «mistagogia poética do silêncio na liturgia», na cadência atividade-contemplação. Silêncio que é tomado não só como ‘fim’, ou ‘meio’, mas sobremaneira enquanto ‘elemento constitutivo’ da liturgia. Eis porque são explorados vários ‘momentos silenciosos’ ocorrentes na estrutura das celebrações litúrgicas. A bola-de-papel-em-fogo (Escritura), que ilumina as profundezas (o íntimo mais íntimo, antes invisível e imprescrutado) dos mistérios celebrados, beneficia do sopro do hesicasmo, em sua lentidão kenótica, porquanto também participa do dinamismo da mistagogia. É, de verdade, o ritmo mistagógico que compassa a iniciação ao silêncio, partindo da ritual ação litúrgica e a ela chegando, na ars celebrandi, por uma luz outra.
Tarefa imensa, quase hercúlea, se coloca à formação litúrgica. Sem ela, porém, será mais difícil, senão improvável, que se atinja aquilo que, reiteradamente, o autor assinala duplicando o incipit: «Na liturgia, o silêncio leva o ser humano a um novo modo de ser (dizer, fazer, pensar, agir), faz o outro falar ou dizer-se, desvelar-se. Na liturgia, o altruísmo do silêncio vê-se quando gera relação em profundidade entre os seres viventes e falantes e o totalmente Outro». E, assim, de suma em suma, através deste processo gradual de cuidado e exercício, ele conclui: «Uma maior atenção a estas realidades (gesto, silêncio, ritmo, movimento) manifesta uma maior qualidade na resposta e, na liturgia, uma qualidade na participação: positiva, plena, ativa e piedosa. Uma busca do invisível, do Deus silente é paulatinamente trabalhada pelo desejo do silêncio, pelo desejo da escuta, pelo desejo da intimidade mais profunda com a sua Palavra. Mergulhar as raízes no silêncio é mergulhar as raízes da existência humana no húmus do silêncio iniciático e criador (génesis)».
Elogio do silêncio sagrado

Silêncios há muitos. Nem todos são salutares. Há o silêncio mortal, que resulta da tragicidade da condição humana, em situações-limite, muitas acidentais, ou de momentos silentes até à sua forma absoluta como no decesso; o silêncio imposto, normalmente decretado por regimes políticos opressivos, no modo de dominação, ou em estratégias de chantagem; o silêncio de ‘omertà’, que de humildade nada tem. Há o silêncio ‘alma do negócio’, que usa do segredo como astúcia ou expediente estratégico nas relações comerciais. Há o silêncio ambíguo, do qual é difícil discernir o propósito dos ‘calados’. E há, entre outros, o silêncio de ouro, que, por sua natureza acrisolada, reúne as qualidades do que é inferruginoso, a bondade, a beleza, a verdade.
Advertido da amplitude, Rafael Gonçalves investe, porém, no trato do tema, a partir daquilo que, no silêncio, há de optimum ou até ele possa iniciar e conduzir na liturgia. E, por conseguinte, percorre a via do ‘elogio do silêncio’. O que faz em sintonia com a perspetiva adotada, entre outros autores, por Marc de Smedt, no livro Elogio do Silêncio, traduzido por Sérgio Lavos. Aliás, surpreendentes serão, para os leitores do livro de Rafael, os ‘espectros’ de gradual iluminação do tema, em lucernário textual (na semelhança às referidas esculturas de Rui Chafes), que advirão da fundura das galerias bibliográficas por ele frequentadas: da literatura universal, com incidência na poesia, inclusa a contemporânea; da filosofia, estética e artes; da teologia e espiritualidade; e, como não poderia deixar de ser, da liturgia. Bibliografia que é pontualmente enriquecida por conteúdos audiovisuais, com entrevistas e programas de televisão, e o aclamado filme, sugestivo inclusive pelas imagens ressaltadas, Dancer in the Dark, do realizador Lars von Trier.
Em ordem a desenvolver a mistagogia poética na liturgia, o autor cartografa e comenta, de forma sintética, a diversidade de ‘momentos silenciosos’ na estrutura da celebração eucarística, conforme a sequência do ordo missae do Missal Romano na sua terceira edição típica. E, neste sentido, recorda quanto se escreve dos elementos constituintes, na Instrução Geral do Missal Romano, sobre o silêncio, que tem como pano de fundo o n.30 da Constituição Sacrosanctum Concilium e o n.305 da Instrução Musicam Sacram: «Também se deve guardar, nos momentos próprios, o silêncio sagrado, como parte da celebração. A natureza deste silêncio depende do momento em que ele é observado no decurso da celebração» (I.G.M.R, 45).
A frequência com que se recorre à designação «silêncio sagrado», em contexto litúrgico, exigira maior clarificação do qualificativo. É um repto que se lança ao autor, a par de outro que, na conclusão geral, lhe parece importante: «Creio que, para futuras pesquisas, seria interessante trabalhar a importância do olhar atento, interligar duma forma mais desenvolvida a capacidade da linguagem visual e gestual, que dizem muita coisa sem dizer palavra alguma, com o silêncio». Também por atenção à linguagem não verbal, apontaria como interesse para investigações subsequentes a relação do silêncio com a quietude na liturgia. Como, aliás, é aprofundada, a partir das fontes e consuetudines litúrgicas, na obra de Klaus Berger (cf. Callar. Una teologia del silencio, 59-77), com atenção particular para diferentes tipos de silêncio: da prostração, por exemplo, nas ordenações e na sexta-feira santa; da incensação, enquanto fala silente; da dança litúrgica, presente em várias liturgias cristãs; dos instrumentos antigos, como matracas de madeira, para substituir os sinos e os órgãos, durante a semana santa; da adoração, in praesentia de dons sagrados; da mútua contemplatio ao venerar os ícones; etc. Temas associados ao silêncio sagrado não faltarão para qualificar as «práticas silenciárias e a mistagogia poética na liturgia».
E, ainda assim, na revalorização da linguagem não verbal, sugeriria um tema correlato. Qual? O «pudor da expressão». De certo modo, a natureza do silêncio na liturgia enquadra-se também naquele «substrato ético», que Romano Guardini assinala em O Espírito da Liturgia: «a liturgia possui um admirável pudor de expressão. É a custo que ela exprime certas formas de abandono, acenando-lhes apenas, ou então envolvendo-as em tão rica e abundante profusão de imagens que a alma, por detrás destas, se sente abrigada e protegida. A oração da Igreja não exibe nem põe à mostra os segredos do coração; ela é capaz de despertar os mais íntimos, os mais profundos, os mais ternos movimentos interiores, mas ao mesmo tempo sabe conservá-los ocultos. (…) A liturgia realizou esta obra prima: tornou possível ao homem exprimir ao mesmo tempo em toda a sua profundidade e plenitude o mais recôndito da sua vida interior e conservar oculto o seu mistério: secretum meum mihi» (O Espírito da Liturgia, p. 23).
Silêncio! Silêncio! Silêncio!

Na obra-prima Papyri graece magicae, podemos ler: «Diga: Silêncio, silêncio, silêncio, (chama assim) o conselheiro do Deus vivo e imortal. Guarda-me, silêncio» (Papyri graece magicae, IV, 558s). Este ‘conselheiro’ poderá ser identificado com a pessoa, segunda no caso, que se encontra ao lado de Deus. É a perspetiva de interpretação segundo a história das religiões. Porém, a ordem para silenciar, que no título se entoa triadicamente, não é para ser observada no mesmo sentido.
«Silêncio! Silêncio! Silêncio!» poderá corresponder, neste caso, às ordenações dos antigos silenciários, como Paulo, o Silenciário (Παῦλος ὁ Σιλεντιάριος), responsável pelo silêncio no palácio do imperador Justiniano I. Ou, mais apropriadamente, às ordens do diácono, durante as anáforas, nas liturgias orientais, com expressões equivalentes: «Prestai atenção!», na anáfora de S. Marcos (J.M. Sánchez Caro – V. Martín Pindado, La Gran Oración Eucaristica, 164); «Estejamos atentos», na anáfora alexandrina de S. Basílio e na anáfora de Santo Epifânio (Ibid., 181 e 199); ou «Vamos prestar atenção», anáfora de S. Gregório, da liturgia copta (Ibid., 192).
Rafael, o Silenciário, que por temperamento também se poderia cognominar ‘o Silente’ ou ‘o Silencieiro’ (não o digo por simples acordo à intitulação do grande romance escrito por António di Benedetto), com este convite, mais do que ‘ordenação’, solicita aos leitores o silêncio sabático, jamais ao silêncio gnóstico, para ler quanto nos lega nestas páginas, escritas com segredos de coração e da língua. Para nossa meditação, sim, mas, ainda mais, para melhor participarmos na liturgia, na medida em que o silêncio, na sua materna abissologia, é liberdade e precede o verbo. E, saliente-se, para considerar mais o silêncio, a partir do seu significado pastoral.
Na liturgia, silenciar com tanta gente? Parece difícil, mas é nesse centro, o silêncio, que se descobre o não-dito, nem tem de ser dito, até o horizonte para onde iremos cumprir o que somos. Nestas duas estrofes da sua balada, Maria Guinot canta-o ao som do piano: «Às vezes é no meio do silêncio/ Que descubro as palavras por dizer/ É uma pedra/ Ou é um grito/ De um amor por acontecer// Às vezes é no meio de tanta gente/ Que descubro afinal p’ra onde vou/ E esta pedra/ E este grito/ São a história d’aquilo que sou» (Maria Guinot no Festival Eurovisão da Canção 1984, autora da letra e da música orquestrada por Pedro Vaz Osório).
Persuadido do valor, inclusive ‘terapêutico’, do silêncio, Rafael Gonçalves, neste momento Diácono, poderia sugerir um CD, gravado na igreja de S. Pedro de Seaford, em East Sussex, na Grã-Bretanha, com 30 minutos de silêncio do seu interior. Talvez esta meia hora, como aquela do Apocalipse (cf. Ap 8,1), possa tornar-se um ‘introito’ para ler este seu livro, cujos valores em alta classificação o júri estimou.

Mistagogia Poética do Silêncio na Liturgia, de Rafael Gonçalves
Ed.: Secretariado Nacional de Liturgia, Coleção Hodie
152 pág.; Outubro de 2022