
Sinéad O’Connor no Cambridge Folk Festival 50th Anniversary, em 1 de Agosto de 2014. Foto © Bryan Ledgard, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons
Todos a conhecem de cabelo rapado, apesar de recentemente se apresentar de lenço na cabeça. Todos se lembram de uma voz única, cristalina, como em Nothing Compares 2 U, original de Prince, que também a usou para denunciar os abusos sexuais de crianças na Igreja Católica. E todos recordam como lançou essa denúncia: rasgou uma foto de João Paulo II, numa emissão numa televisão americana, atraindo a ira de muitos – quando ainda ninguém ousava apontar o dedo a um comportamento ignóbil de muitos padres e religiosos. A irlandesa Sinéad O’Connor morreu em Londres, aos 56 anos, soube-se esta quarta-feira, de causas não reveladas, que a polícia britânica não considera suspeitas, e todas estas histórias vieram de novo ao de cima. As histórias e as canções.
Sinéad carregava uma história pesada, de abusos psicológicos e físicos, na infância, praticados pela mãe, e de diferentes problemas de saúde mental, com diagnósticos de um transtorno bipolar e stress pós-traumático complexo. Tentou o suicídio e, no ano passado, em 8 de janeiro de 2022, o seu filho matou-se, com a própria a viver momentos difíceis nas semanas seguintes. “O meu lindo filho, Nevi’im Nesta Ali Shane O’Connor, a luz da minha vida, decidiu hoje pôr fim à sua luta terrena e está agora com Deus”, escreveu então.
Nascida em Dublin, na República da Irlanda, em 8 de dezembro de 1966, Sinéad Marie Bernadette O’Connor converteu-se ao islão em 2018 assumindo o nome de Shuhada’ Sadaqat — menos na música. Aí continuou a assinar com o nome com que o mundo se espantou.
Se Sinéad não publicava nenhum álbum desde 2014, quando lançou I’m Not Bossy, I’m the Boss, nos últimos anos tinha sido possível escutá-la em diferentes momentos: em 2020, fez-se ouvir numa cover de Mahalia Jackson, Trouble Of The World, para apoiar o movimento Black Lives Matter; em 2018, associou-se ao projeto Evamore (com Brian Eno, o guitarrista dos Roling Stones, Ronnie Wood, o baterista dos Pink Floyd, Nick Mason, os coros de Imelda May, a narração de Cillian Murphy, numa produção de John Reynolds); e em 2016 tinha participado no álbum de tributo a Blind Willie Johnson com Trouble Will Soon Be Over, ao lado de Tom Waits, Lucinda Williams, Cowboy Junkies, Ricky Lee Jones ou Maria McKee — coisa séria. Na gaveta ficou o álbum que antecipou para 2022, com o título de No Veteran Dies Alone, mas este verão ainda trouxe, a 16 de junho, um último sopro da sua voz no tema-título da sétima temporada de Outlander.
As versões caíam-lhe bem, e é uma dessas covers que a catapulta para o reconhecimento e o sucesso planetário: a Nothing Compares 2 U que todos ouvimos algures na vida, incluída no segundo disco I Do Not Want What I Haven’t Got (1990) e que foi número um em muitas tabelas de vendas.
Para trás ficava uma estreia promissora, The Lion and the Cobra (1987), que projetou uma voz tão cativante como aguda, em tons cheios de raiva ou quase cândidos. Ouça-se por exemplo Mandinka, o single de então.
Am I Not Your Girl (1992) e Universal Mother (1994) mantiveram a fasquia elevada, com Sinéad a cantar e a encantar, mesmo quando arriscava uma aproximação ao hip-hop em Famine. A canção é uma violenta declaração sobre a Grande Fome que a Irlanda sofreu às mãos dos ingleses e um retrato cruel de uma vassalagem cultural irlandesa, um caldo perfeito para a pobreza do país ou os abusos sexuais da Igreja local.
Foi sempre assim, Sinéad: dura, polémica, entre a raiva e a candura. O ex-Smiths Morrissey atacou as homenagens póstumas: “Não tiveram a coragem de lhe prestar apoio enquanto era viva. Ela foi abandonada pela editora após vender sete milhões de discos. Ficou louca, sim, mas desinteressante nunca.” No Público, Miguel Esteves Cardoso lembrou como ela pediu ajuda várias vezes, mostrando o seu sofrimento (ligação disponível para assinantes): “Ela mostrou e pediu. E voltou a mostrar e a pedir. Mas as pessoas cansaram-se de ajudá-la. E depois cansaram-se de ouvi-la, tal como o público musical desiste num só segundo de um artista que adorava, só porque ouviu uma música de que não gostou.”
No site da cantora, o destaque é o livro de memórias lançado no ano passado, Rememberings, com uma frase de Michael Stipe, dos REM, a acompanhar. E que, profeticamente, se ajusta a um epitáfio: “A sua voz nestas páginas é tão destemida, fascinante e inesquecível quanto a sua voz na música. A cadência por si só é hipnótica, a sua história essencial.”
Ao Expresso, em 2020, Sinéad contou o que recordava de uma passagem por Portugal. “A lua mais bonita que vi na vida foi em Portugal. Estava tão perto que parecia que bastava esticar a mão para a agarrar.” Agora, a lua brilha mais intensamente.